quinta-feira, 19 de setembro de 2024
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TSE – Legislador Incompetente

Jamais pude imaginar que a teoria da tripartição de poderes pudesse ser tão violentamente agredida. Que já não mais tem sua pureza original, é sabido. No entanto, nunca pensei que…

Jamais pude imaginar que a teoria da tripartição de poderes pudesse ser tão violentamente agredida. Que já não mais tem sua pureza original, é sabido. No entanto, nunca pensei que seu violentador seria, exatamente, o Judiciário.
A Resolução baixada pelo TSE e que disciplina o procedimento de cassação de mandato do infiel é de conteúdo triste, para não dizer inconstitucional. Sei que três ministros do STF são seus redatores e endossantes, o que robustece sua sustentação jurídica.
Modestamente, sem o conhecimento jurídico de S. Exas., arrisco a lançar meu lamento jurídico de alguém que ainda crê que legislador legisla, juiz decide e administrador executa.
Manifesta a agressão à Constituição que determina que lei complementar disporá sobre a competência dos Tribunais (art. 121). Não é Resolução que pode criar competência orgânica sem lei. Pior, ignora o Código Eleitoral que fixa competência do juiz eleitoral (art. 35) e outorga competência original aos Tribunais Regionais Eleitorais (não existente na lei, nem na Constituição).
Surrupia atribuições da União a quem cabe, por seu órgão legislativo (Congresso Nacional), privativamente, legislar sobre direito processual, eleitoral (inciso I do art. 22) e sobre cidadania (inciso XIII do mesmo artigo). Mais que isso, cria tipos de exclusão de infração partidária (incisos do parágrafo 1º do art. 1º da Resolução), definindo o que se entende por justa causa a embasar o pedido de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária. Como se tais agressões à Constituição não fossem suficientes, outorga legitimidade ativa para requerer a cassação ao partido, a quem tenha interesse jurídico (?) e ao Ministério Público. Vê-se que, dentre as atribuições do Ministério Público não figura tal legitimidade. Nem a terceiro, na medida em que o STF entendeu que o cargo eletivo pertence ao partido. Não a terceiros que estariam se intitulando legitimados sem que a lei assim os considere.
Legisla sobre direito processual e procedimental (no primeiro caso, se apropria de competência da União e, no segundo, dos Estados – inciso I do art. 22, combinado com o inciso XI do art. 24, da Constituição). Estabelece prazos, presunção de veracidade dos fatos, no caso de revelia, estipula número máximo de testemunhas, estabelecendo dever à parte de trazer as testemunhas até o relator (e se a parte não tem condições de pagar a passagem das testemunhas para a Capital dos Estados, uma vez que a competência é dos TREs?). Dispõe sobre o ônus da prova, que cabe aos requeridos (art. 8º da Resolução). Estabelece efeito recursal, somente devolutivo (art. 11). Impede recurso ao Tribunal Superior Eleitoral (art. 11). Determina sua aplicação aos TREs e, por fim, em dourada inconsistência, estabelece a hipótese de incidência e seu termo, para que ocorram as cassações.
Erasmo, em Elogio da Loucura, ao comentar sobre os juristas, fala na cumulação de leis “sem se importar se elas têm ou não relação com os assuntos de que tratam” (a vaidade é a pior das loucuras).
O que acontece se o parlamentar for expulso do partido? Quem assume no caso de coligações partidárias? Quem reembolsa o candidato, no caso de cassação decretada, das despesas que teve em sua eleição, uma vez que tirou CNPJ e prestou contas à Justiça Eleitoral? É necessário advogado para tais providências?
Deixo em suspenso as indagações, pois o legislativo ainda não dispôs sobre elas.
As agressões à Constituição: a) rouba competência legislativa, agredindo a tripartição de poderes; b) legisla sobre direito eleitoral; c) legisla sobre direito processual e procedimental; d) agride o devido processo legal; e) hostiliza o princípio do direito de defesa. Enfim, é um cipoal de inconsistências.
Geraldo Ataliba conta gostosa história do cidadão que não se conforma com texto de lei. Revoltado, candidata-se a deputado federal, redige o texto e logra sua aprovação no Congresso. Tempos depois, vê que seu texto não é aplicado como desejava.
O legislador candidata-se, vai às ruas expondo suas idéias, realiza coalizões, coligações, compõe-se dentro dos partidos, discursa, obtém recursos financeiros para suportar seus custos, presta contas e, finalmente, consagra-se recebendo um mandato popular. É o único competente, reconhecido pela Constituição, para legislar, isto é, criar direitos e obrigações nas relações intersubjetivas. Nenhuma outra autoridade, por mais respeitada que seja, tem competência para legislar em seu lugar, sob pena de usurpação de atribuições. Quem quiser legislar que se candidate e disponha sobre princípios e normas jurídicas.
Demais disso, Resolução não cria direito novo (princípio da legalidade – inciso II do art. 5º da CF), cabendo apenas ao TSE expedir instruções que julgar convenientes à execução do Código (inciso IX do art. 23 do Código Eleitoral), responder consulta (inciso XII – meros atos administrativos).
Imagino que o aplauso da imprensa, que tem o legislativo como grande Judas a apanhar diariamente, desperta a vaidade do intelecto. Julgar-se acima da Constituição e das leis pode dar às pessoas imunidade para interpretar o ordenamento jurídico à sua maneira, o que é triste, pois se sobrepõe aos demais poderes. Montesquieu já advertia que é experiência eterna que todo aquele que detém poder tende a abusar dele. É imprescindível que o poder detenha o poder. O confronto pode vir a acontecer, o que seria lastimável para a democracia que estaria sendo conspurcada, exatamente, por aquele que detém a competência para restaurar o ordenamento jurídico quando lesado, mas não para criar obrigações, deveres, direitos e poderes ao arrepio do legislador.
Pena que não há tempo de arrependimento…

Regis de Oliveira, 63, é deputado federal (PSC/SP),
desembargador e professor-titular de Direito Financeiro
da Faculdade de Direito da USP.

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