O mês de outubro é lembrado por algumas datas comemorativas definidas no calendário anual, dentre elas o Dia das Crianças.
A data foi criada para celebrar os direitos das crianças e adolescente, contribuindo para a conscientização, especialmente dos pais e responsáveis, sobre os cuidados necessários que essas fases da vida necessitam.
Apesar da intenção nobre da proposta, na prática, não é o que acontece. Ainda que muitos abnegados realizem festas gratuitas para divertir, alimentar e presentear as crianças carentes financeira e emocionalmente, com a generosa intenção de suprir ao menos um pouco da segunda carência, na maioria dos casos, essa data é somente o dia de distribuir presentes a meninada. Está mais para o Dia dos Brinquedos do que das crianças.
Como já falei desse tema anteriormente, vamos para o assunto deste texto. O título escolhido talvez tenha assustado alguns possíveis leitores que, cansados de más notícias, voltaram seus olhos para outros enunciados.
Aos mais curiosos, que resolveram prosseguir na leitura com intuito de descobrir a quais tragédias o texto se refere, devo aliviar sua tensão desde já. Não são tragédias propriamente ditas, ou melhor, não são tragédias que afetam a integridade física, ao menos não imediatamente.
As tragédias a que me refiro são aquelas acidentadas no plano das ideias, tanto as que provocam o medo instantâneo nas crianças, como as cruéis advertências dos adultos por meio da famosas frases “aí tem bicho papão”, “a polícia vai te pegar”, “olha o escuro”, “cuidado com o homem do saco”, dentre tantas outras, para impedi-las de fazer o que não se deseja, quanto aquelas relatadas em inúmeras canções infantis, que cantam e contam histórias trágicas e gravam suas mensagens no subconsciente desde cedo.
“A canoa virou / Pois deixaram ela virar / Foi por causa de Maria / Que não soube remar”, canção cuja primeira estrofe ressalta a dificuldade da coitada da Maria, que levou a culpa pelo acidente que mais parece ter sido causado por uma atitude imprudente, pois “deixaram” a canoa virar.
“Se eu fosse um peixinho / E soubesse nadar / Eu tirava Maria / Do fundo do mar”. Pior, a Maria afogando e ninguém para socorrê-la. “Siri pra cá / Siri pra lá / Maria é bela / E quer casar”. Todo mundo olhando a Maria morrendo afogada no fundo do mar e só lembram que ela não vai poder casar. Além do machismo, ainda tem preconceito: se ela fosse feia, não teria problema de morrer sem casar?
“Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de umas boas palmadas”. Rotulou a criança de bagunceira, que, mesmo machucada, ainda corria o risco de apanhar (provavelmente) dos pais.
“O Pato pateta / Pintou o caneco / Surrou a galinha / Bateu no marreco / Pulou do poleiro / No pé do cavalo / Levou um coice / Criou um galo”. O instinto violento desse “pato” não é um bom exemplo para criança alguma, muito menos a falta de ajuda e a solução que deram ao problema, quando “Tantas fez o moço / Que foi pra panela”. Violência maior para sanar a menor.
As tragédias não param por aí. “Marcha soldado / Cabeça de papel / Quem não marchar direito / Vai preso pro quartel / O quartel pegou fogo / A polícia deu sinal / Acode, acode, acode a bandeira nacional.” O pobre do soldado é humilhado e, ainda por cima, trancafiado. Até aqui, coisas de militares. Mas, com o prédio em chamas, preocupar-se em salvar a bandeira e dane-se os saldados que estão lá dentro, parece demais. Talvez tenha faltado finalizar a estrofe com “Bandeira acima de tudo”. Daria mais sentido à ordem superior e mais realizadade à inocente canção.
Não bastassem as tragédias, outras canções são recheadas de preconceitos e maus exemplos. É só ver a letra de “Dona Aranha”, teimosa e desobediente ou ler os versos de “Pai Francisco”, que passou por discriminação racial, preconceito. foi preso por algazarra (que hoje chamamos de festa) e levou o maior cacete na delegacia.
Só agora, depois de tantos anos, quando comecei a ouvir novamente essas canções com a minha filha pequena, que percebi como elas podem ser perigosas. Não deve ser à toa que tem tanta gente precisando de terapia.
Como essas músicas continuam sendo cantadas com sorrisos largos e interpretadas por novos cantores e seus personagens animados, em modernos arranjos, acho melhor aumentarem as turmas dos cursos superiores de saúde mental. Haja psicólogo e Rivotril para tanta tragédia.
Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com