A Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo abriu hoje (11) procedimento para apurar a denúncia de que um juiz da comarca de Mococa (interior paulista) autorizou a esterilização (laqueadura) compulsória de uma moradora de rua sem o acompanhamento de um advogado ou de um defensor público.
O caso foi revelado no último sábado em uma coluna publicada no jornal Folha de S. Paulo. A Corregedoria do Ministério Público também instaurou nesta segunda-feira uma reclamação disciplinar para apurar o caso.
A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo informou que o Poder Judiciário não pode se manifestar sobre os processos em andamento. No entanto, explicou que a decisão judicial foi revista em segunda instância e os próprios desembargadores da 8ª Câmara de Direito Pública que julgaram o caso determinaram a remessa do processo para avaliação das corregedorias da Justiça e do Ministério Público. O Ministério Público de São Paulo, de outro lado, informou que o procedimento médico foi realizado com base em decisão judicial.
O pedido para que a laqueadura fosse feita na moradora de rua Janaína, cujo nome não foi divulgado integralmente, partiu do Ministério Público e foi deferido pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior. A decisão obrigou a prefeitura de Mococa a realizar a laqueadura, sob pena de multa diária de R$ 1 mil. O procedimento ocorreu logo após Janaína ter tido o bebê. Em 2017, quando a decisão judicial foi publicada, o juiz escreveu que Janaína havia manifestado o interesse em realizar o procedimento de esterilização feminina, pois não tinha condições econômicas para ter outros filhos, além de ser dependente química.
Apesar da vitória da prefeitura de Mococa na segunda instância, a decisão não chegou a tempo de evitar o procedimento cirúrgico da mulher, supostamente levada à sala de cirurgia sob condução coercitiva.
Defensoria quer ouvir mulher
A Defensoria Pública de São Paulo informou que está apurando o caso e que pretende ouvir Janaína “tão logo quanto possível”. Os defensores pretendem realizar uma entrevista reservada com Janaína, que, segundo o juiz, cumpre pena por tráfico de drogas e associação ao tráfico. “Sua situação prisional também será analisada com a urgência devida”, informou a Defensoria Pública, ressaltando não ter sido chamada para defender Janaína durante este processo.
“De qualquer modo, é importante ressaltar que qualquer pedido de esterilização involuntária, tal como feito na propositura da ação, contraria frontalmente o artigo 2º, parágrafo único, e artigo 12 da Lei 9.263/1996, que proíbem a realização dos procedimentos previstos na Lei de Planejamento Familiar com a finalidade de exercer controle demográfico, bem como é vedada a indução individual ou coletiva à prática da esterilização cirúrgica”, disse Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.
Juiz alega consentimento
Por meio de nota, o juiz negou que Janaína fosse moradora de rua e disse que ela concordou com a proposta do Ministério Público para que fizesse laqueadura. Segundo ele, a mulher expressou em cartório da cidade que é mãe de sete filhos, que estava grávida do oitavo e que estava de acordo em fazer a laqueadura para “evitar nova gestação indesejada”. O juiz também informou que Janaína e a sua família vinham sendo acompanhados pela comarca de Mococa e que todos os filhos dela passaram pelo serviço de acolhimento da cidade, “alguns em mais de uma ocasião, devido à negligência dos pais em desempenhar devidamente suas funções, expondo-os a situações de risco, com o agravante de serem dependentes químicos (de crack e de bebida alcoólica) e não aderirem ao tratamento proposto, apesar de várias intervenções da rede protetiva do município”.
De acordo com o juiz, foi instaurado um processo de destituição do poder familiar, o que culminou com destituições e adoções. “Paralelamente, o Ministério Público ajuizou ação solicitando o procedimento de laqueadura de Janaína. No bojo da ação, foi realizada avaliação psicológica. Durante o trâmite da ação, Janaína compareceu ao cartório e expressamente manifestou ciência e concordância com a pretensão de laqueadura. Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos”, diz o juiz, em sua defesa.
Decisão arbitrária do Judiciário
Em entrevista à Agência Brasil, Carla Vitória, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista, classificou o ato como “uma violência sem tamanho” e que foi uma decisão arbitrária do Judiciário. Segundo Carla, situações como essas eram comuns no país entre os anos de 1980 e 1990. “É uma forma de controlar a vida das mulheres, principalmente das mulheres pobres”, disse.
“Foram violados os direitos dela de decidir o que fazer com o próprio corpo. Foi um ato extremamente violento”, falou ela. “Cabe lembrar que, muitas vezes, alguns setores tentam convencer uma população que tem menos acesso a direitos desse tipo de política. É que acontecia nos anos 80 e 90. E é muito sintomático que, no momento em que o movimento feminista vem denunciando o avanço do conservadorismo, essas coisas voltem a acontecer dessa maneira”, falou.
Para Carla, a decisão do Judiciário sobre o corpo de Janaína demonstra que a Justiça do país é patriarcal. “É uma justiça extremamente patriarcal e que subtrai toda a capacidade da mulher de pensar por si mesma, de agir por si mesma e a trata como se fosse um ser que não pudesse tutelar as próprias ações”, disse. “Esse caso, além de nos provocar profunda indignação, nos deixa alertas. É mais um sintoma do avanço conservadorismo que vem atacando os direitos das mulheres”, falou.
Violação de direitos fundamentais
A Defensoria Pública da União (DPU) apresentou uma nota de repúdio sobre o caso na qual informa que vai representar no Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público, além de estudar medidas a serem adotadas no âmbito internacional. “No referido processo judicial, verificou-se a não observância dos direitos fundamentais da mulher, relacionados à autodeterminação, dignidade da pessoa humana, liberdade, sobretudo em face de seus direitos reprodutivos”, diz a nota.
Também por meio de nota, o Instituto de Garantias Penais criticou a decisão judicial e classificou o caso como uma “ultrajante violação de direitos e garantias fundamentais”. O instituto diz que o Ministério Público “manejou, de forma aberrante, ação civil pública para pedir que o Estado laqueasse as tubas uterinas” de Janaína e que o juiz determinou a laqueadura sob condução coercitiva sem a participação de advogado no processo.
A Agência Brasil também tentou contato com a prefeitura de Mococa, mas não obteve retorno até o momento de publicação da reportagem.