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SUICÍDIO: dói o corpo, dói o peito, dói a alma

O suicídio impacta as populações mais vulneráveis do mundo e é altamente prevalente em grupos marginalizados e discriminados da sociedade. Pode não referir um problema grave de saúde pública nos…

O suicídio impacta as populações mais vulneráveis do mundo e é altamente prevalente em grupos marginalizados e discriminados da sociedade. Pode não referir um problema grave de saúde pública nos países desenvolvidos: na verdade, a maioria dos suicídios ocorre onde os recursos e serviços, quando existem, são, muitas vezes, escassos e limitados para identificação precoce, tratamento e apoio às pessoas necessitadas (CFP, 2013; WHO, 2014; FERREIRA et al., 2018). Em esfera global, a maioria das mortes por suicídio tem ocorrido em países de rendimento baixo e médio (79%), onde vive a maior parte da população mundial (84%). Em relação à idade, mais da metade (52,1%) dos suicídios globais tem ocorrido antes dos 45 anos, e a maioria dos adolescentes que morreram por suicídio (90%) eram de países de baixa e média renda (WHO, 2019). Estes fatos, acrescidos da falta de intervenções preventivas, fazem do suicídio um problema de saúde pública global devido aos impactos econômicos e psicossociais que produz no seio das comunidades e que precisa ser combatido de forma mais assertiva.

Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio constitui uma das principais causas de morte no mundo. Anualmente, o número de pessoas que morrem por suicídio é maior do que por HIV, malária, câncer de mama ou guerras e homicídios. De acordo com a OMS, em 2016, cerca de 804.000 pessoas morreram por suicídio em todo o mundo, a mostrar uma morte a cada 40 segundos e 10 a 40 tentativas de suicídio para cada morte por suicídio, a depender da região do planeta (WHO, 2019a; SILVA; MARCOLAN, 2021).Em 2019, uma em cada 100 mortes ocorreu por suicídio, o que levou a OMS a produzir alertas e novas orientações na expectativa de auxiliar os povos a melhorarem a prevenção do suicídio e atendimento (OPAS, 2021).As taxas variam entre países, entre regiões e entre homens e mulheres (PENSO; SENA, 2020).

No Brasil, a World Health Organization (WHO, 2019b) indica ter havido um aumento de 7% na taxa de suicídio, principalmente entre adolescentes, sendo a quarta maior causa de mortes de jovens de 15 a 29 anos de idade no país (MS, 2021)e a segunda no mundo, depois de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal (OPAS, 2021).Segundo Ribeiro et al. (2018),em 2012, no Brasil, foram registradas 11.821 mortes e, entre 2000 e 2012, houve um aumento de 10,4% nestes óbitos (17,8% entre mulheres e 8,2% entre os homens).Em 2018, foram registradas 12.733 mortes por suicídio, ou seja, 35 mortes por dia, uma morte a cada 41 minutos, com taxa de 6,1 suicídios para cada 100.000 habitantes, o maior número absoluto de suicídios no mundo(SILVA; MARCOLAN, 2022) – dados que colocam o Brasil no oitavo lugar em número de suicídios no mundo.

No Brasil não se tem um programa de vigilância ao comportamento suicida, e os dados a respeito não são confiáveis, quer pela notória subnotificação do comportamento suicida no sistema de saúde, quer pelo mascaramento de dados como em casos de atendimentos de urgência em prontos-socorros que acabam diagnosticados como intoxicação endógena, ferimento por arma de fogo ou arma branca e acidente automobilístico, quer porque os sobreviventes familiares, por vergonha ou devido ao julgamento moral, escondem a causa real dos eventos. Isto acaba por refletir nos dados oficiais fornecidos a OMS: apontam uma enganosa baixa taxa de suicídios na população brasileira, 5,8 por 100 mil habitantes (MARCOLAN, 2018).

Minayo (2007, p. 311) esclarece que o suicídio e seus desdobramentos (tentativas, ideação, comportamento autopunitivo) se encontram “entre as dez principais causas de óbito no mundo e é a principal causa de morte violenta”: em termos globais, a mortalidade por suicídio aumentou em 60% no mundo nos últimos 45 anos, sendo as taxas referentes a adolescentes e idosos aquelas que mais tendem a crescer. Entre os jovens, o suicídio constitui a segunda ou terceira causa de morte em muitos países”. Para Bezerra et al. (2022), Esses dados revelam um cenário “preocupante e multifacetado” e mostram a “necessidade de investigações sistematizadas que favoreçam o agenciamento adequado de estratégias de intervenção”.

Estima-se que, no mundo, mais de 700 mil pessoas morram por suicídio anualmente. É um fenômeno complexo e multicausal que impacta o indivíduo e a coletividade, podendo afetar indivíduos de diferentes origens, sexos, culturas, classes sociais e idades. Está vinculado a uma gama de fatores, que cursam aqueles de natureza sociológica, econômica, política, cultural, passando pelos fatores psicológicos e psicopatológicos, até biológicos (MS, 2021; WHO, 2023). A imensa maioria das pessoas que tenta ou realiza o suicídio é acometida por algum transtorno mental, sendo o mais comum a depressão.

O termo suicídio (do latim: sui – si mesmo, e cædere –matar) aponta para a necessidade de se buscara morte como último refúgio para o sofrimento que se julga insuportável: isto não significa um ato de coragem ou de covardia, mas de desespero. Trata-se de ação voluntária ou ato deliberado com o intuito de fazer cessar a própria vida (PENSO; SENA, 2020), isto é, com a intenção de se matar, de forma consciente e intencional, usando meios que o sujeito acredita serem letais, após certo grau de reflexão, planejamento e ação: a morte significaria o fim de tudo, dos sofrimentos psíquicos, transtornos psiquiátricos, desesperança, frustrações, desencantos etc.(SCAVACINI, 2018; ANGÉLICO, 2022).

Neste invólucro, também faz parte o que habitualmente se chama de comportamento suicida, que inclui os pensamentos, os planos e a tentativa de suicídio(BOTEGA, 2014; SILVA; MARCOLAN, 2021), ou seja, abrange a ideação, o planejamento, a tentativa e o suicídio (MARCOLAN, 2018). A prevalência desse comportamento na população brasileira ao longo da vida mostra que 17% das pessoas pensaram, em algum momento, em tirar a própria vida. Uma tentativa de suicídio é o principal fator de risco para outra tentativa (recidiva) e para o próprio suicídio: acredita-se que cada morte de adulto cometida “corresponda a até vinte tentativas; entre seis a dez pessoas são afetadas diretamente pela perda, com prejuízos emocionais, sociais ou econômicos” – fenômeno que “impacta não apenas os sobreviventes, familiares e pessoas próximas à vítima, mas também a comunidade” como um todo (MARTINS; GUERRA, 2019, p. 47).

O suicídio se realiza por diversos meios letais, como o uso de armas brancas e de fogo, enforcamento (práticas mais comuns entre os homens), ingestão de fármacos ou de substâncias letais (intoxicação exógena, mais comuns entre as mulheres) como pesticidas, uso abusivo e prolongado de álcool e drogas, prática de atividades que coloquem a vida em risco, descuidos com a própria saúde ou mesmo uma vida sexual promiscua (RIBEIRO; MOREIRA, 2018; MELO et al., 2018; ARRUDA et al., 2021).Botega (2014) admite que, no Brasil, a própria casa é o cenário mais comum de suicídios (51%), seguido pelos hospitais (26%), sendo os principais meios utilizados o enforcamento (47%), armas de fogo (19%), envenenamento (14%) e precipitação de altura (queda). Arruda et al. (2021) ressaltam que, além dos hospitais como local de grande ocorrência do evento, o domicílio surge como principal ambiente de escolha para o ato suicida devido à facilidade de acesso aos meios necessários para consumação do ato, entre os quais estão substâncias tóxicas, medicamentos, venenos como “chumbinho” e o enforcamento.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014, p. 9)conceitua o suicídio como“ um ato deliberado executado pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a morte, de forma consciente e intencional, mesmo que ambivalente, usando um meio que ele acredita ser letal. Também fazem parte do que habitualmente chamamos de comportamento suicida: os pensamentos, os planos e a tentativa de suicídio”. Trata-se de um comportamento com determinantes multifatoriais, resultante de uma complexa integração de fatores psicológicos, biológicos/orgânicos, genéticos, socioculturais e ambientais (MARCOLAN, 2018). Assim, o suicídio representa o desfecho de uma série de fatores conjugados ou interligados, que se acumulam na história de vida do indivíduo, não tendo, portanto, forma casual e simplista: é consequência de um processo complexo, que não vem associado a acontecimentos pontuais da vida do sujeito. Afeta familiares, amigos e comunidades, e gera impactos desestruturantes sobre as pessoas que fazem parte dos vínculos sociais do indivíduo (MARCOLAN, 2018; ARRUDA et al., 2021; SILVA; MARCOLAN, 2021).

Qualquer que seja a definição adotada, o suicídio designa um ato humano, deliberado, intencional de infligir a si próprio o fim da vida: a “intenção de morrer é o elemento-chave” (MINAYO, 2007, p. 312). No entanto, torna-se difícil precisar o pensamento e a vontade das pessoas que se auto eliminam, mesmo quando deixam claras suas intenções antes de morrer.

Minayo (2007) e WHO (2014) estabelecem as diferenças entre os conceitos ligados ao suicídio: a) suicídio fatal: ato humano de tirar a própria vida – as taxas globais evidenciam dois picos: a faixa de 15 a 35 anos de idade e idosos acima de 75 anos; b) tentativa de suicídio: ato de buscar a própria morte, sem a consumação; é mais frequente entre jovens, todavia, entre idosos existe uma relação mais próxima das tentativas com os atos consumados, c) ideação (pensamento) suicida: ocorre, geralmente, quando o ser humano enfrenta situações extremamente difíceis, conflituosas e dolorosas; torna-se problemática quando o sujeito imagina que sua vida perdeu o sentido –é mais frequente entre adolescentes, população idosa e determinados grupos profissionais, como médicos, policiais e agricultores; d) comportamento autopunitivo: ato de se infligirem danos voluntariamente, como ferir-se de propósito, causar lesão a seu corpo, ficar sem se alimentar, entre outros – a autopunição constitui sério problema para a família e para a pessoa, exige cuidados que têm custos elevados, é mais frequente jovens e pessoas com baixa capacidade intelectual (autista) ou com dificuldades de comunicação, déficit de atenção, hiperatividade, ou com desordem na organização do pensamento e problemas visuais.

Botega (2014, p. 232) assume que “vários fatores socioculturais e econômicos parecem se associar a […] altos índices [de suicídio], bem como elevada frequência de sofrimento mental e de uso abusivo de bebidas alcoólicas”, embora, no Brasil, dados sobre mortalidade por suicídio derivem de informações constantes de atestados de óbitos compiladas pelo Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (MS) e quase sempre subestimados ou subnotificados. Além disso, as causas de um suicídio (fatores predisponentes) são mais complexas que um acontecimento recente, como perda do emprego ou rompimento amoroso (fatores precipitantes do ato suicida), estando, na maioria dos casos, associadas à existência de um transtorno mental.

É importante considerar que os fatores predisponentes ao suicídio não atuam isoladamente nem são preditores efetivos do suicídio, mas as consequências que deles derivam podem ampliar a vulnerabilidade das pessoas ao comportamento suicida. Esses fatores incluem: isolamento social, abandono, exposição à violência intrafamiliar (especialmente entre adolescentes),história de abuso físico ou sexual, transtornos de humor e personalidade, doença mental, impulsividade, estresse, uso de álcool e outras drogas, presença de eventos estressores ao longo da vida, déficit no suporte social, sentimentos de solidão, desespero e incapacidade, presença de suicídio de um membro da família (o sujeito pode tentar repetir o ato suicida, o que caracteriza a transgeracionalidade do comportamento suicida), pobreza (essa vulnerabilidade pode predispor ao suicídio, porque o desemprego, o estresse econômico e a instabilidade familiar aumentam os níveis de ansiedade dos indivíduos), decepção amorosa, homossexualismo não aceito ou não compreendido, bullying, controle externo, oposição familiar a relacionamentos sexuais, condições de saúde desfavoráveis, baixa autoestima, rendimento escolar deficiente, dificuldade de aprendizagem, dentre outros (BOTEGA et al., 2009; BRAGA; DELL’AGLIO, 2013; BOTEGA, 2014).

Os sintomas que antecedem ao ato são similares aos sintomas da depressão, dos transtornos mentais, do estresse pós-traumático. Envolvem fatores clínicos, sociodemográficos, genéticos, físicos e psicológicos (dormência física, anestesia emocional, desprendimento da realidade, isolamento, perda de apetite, fadiga, cansaço, prostração), que devem servir como parâmetros para a avaliação de risco(CFP, 2013).Nesta avaliação, deve ser identificada a existência de: a) algum tipo de transtorno mental (depressão, ansiedade, transtorno de personalidade, esquizofrenia), uso de substâncias psicoativas (álcool, drogas), existência de alguma comorbidade que potencialize o risco, comportamento com prejuízos nas atividades diárias, uso de roupas de mangas longas (podem esconder marcas de automutilação), mudanças na rotina do sono (insônia, alteração de horários para dormir e acordar), isolamento repentino da família e do contato social, existência prévia de traumas, conflitos, formação de personalidade, abandono afetivo, abusos, violências recebidas, solidão, estilo de vida; b) fatores psicológicos (perdas recentes, impulsividade, agressividade, dinâmica familiar conturbada), percepções autodepreciativas; c) condições clínicas incapacitantes (AIDS, neoplasias malignas, doenças orgânicas e crônicas); d) fatores sociodemográficos (isolamento social, estado civil, desemprego, extrato econômico, aposentadoria); e) fatores predisponentes (transtorno mental, doenças) e fatores precipitantes (estressores – separação conjugal, perda ou luto). A ponderação sobre os riscos desenha o ponto de partida para elaboração de planos que garantam acolhimento e tratamento adequados (BOTEGA et al., 2009; BERTOLOTE; MELLO-SANTOS; BOTEGA, 2010; CFP, 2013;MARCOLAN, 2018; MELO et al., 2018; CRPDF, 2020).

Segundo o Ministério da Saúde (MS, 2023a,b), o “comportamento suicida éuniversal, não conhece fronteiras e por isso afeta a todos”. No Brasil, são registrados cerca de 12 mil suicídios todos os anos e cerca de 96,8% dos casos estão relacionados com transtornos mentais, prevalecendo a depressão, seguida do transtorno bipolar e do abuso de substâncias (MS, 2023a). São os principais sinais de depressão: tristeza profunda, distúrbios do sono, pensamentos negativos, desinteresse e apatia, baixa autoestima, desleixo com a aparência, dores físicas, rejeição, irritabilidade, choro frequente e aparentemente sem motivação, falta de vontade de executar atividades simples, mudanças bruscas de comportamento (MS, 2023b). O Ministério da Saúde também elenca os principais sinais de alerta para o suicídio: desesperança, raiva, descontrole, desejo de vingança; agir de forma imprudente ou se envolver em atividades de risco, aparentemente sem pensar, sentir-se preso, como se não houvesse saída; ansiedade, agitação, distúrbios do sono; mudanças drásticas de humor; ameaça de se machucar ou se matar, fala em querer morrer (“eu prefiro morrer a passar por isso”, “não quero mais viver”);procura maneiras de se matar (maio: armas ou outros itens letais), dentre outros(MS, 2023a).

O estigma e o tabu relacionados ao suicídio são alguns dos diversos fatores que impedem a detecção precoce e sua prevenção, quer por razões religiosas, morais ou culturais (ABP, 2014). É essencial que a prevenção do comportamento suicida comece na família, que deve aprendera lidar com a morte ou a possibilidade dela. Por tabu ou preconceito, vulnerabilidades ou fragilidade de laços afetivos (FERREIRA et al., 2018),geralmente a família tende a esconder tendências suicidas por “acreditar que os filhos pequenos não terão recursos psíquicos para encarar a situação” (CFP, 2013, p. 27). O trabalho nas escolas é outro locus importante para se iniciar a prevenção: com as crianças deve ser trabalhada, desde cedo, a valorização da vida e valores humanos, por meio da transversalidade temática, de programas psicoeducativos que acentuam o resgate de valores e os sentidos positivos do existir, como fraternidade, harmonia, respeito, dignidade humana como elementos que contribuem para o enfrentamento das dificuldades ao longo da vida.

Igualmente, é de extrema importância que se realizem treinamentos com as equipes de saúde, de educação, de apoio, com os diversos segmentos da sociedade (engenheiros, profissionais do Direito, bombeiros e policiais, profissionais liberais), o que pode contribuir, potencialmente, para a identificação precoce dos riscos de comportamento suicida e, ao mesmo tempo, proporcionar tempo e oportunidade de intervenções com um trabalho em rede de assistência e cuidado (CFP, 2013).É possível, pois, prevenir o suicídio, desde que os profissionais de saúde de todos os níveis de atenção estejam capacitados a reconhecer os fatores de risco, para determinarem medidas de redução do risco e evitar o suicídio (WHO, 2014).

O “risco de suicídio é uma urgência médica”, porque pode imputar ao indivíduo lesões graves e incapacitantes e mesmo sua morte. Assim, avaliar sistematicamente os riscos de suicídio “deve fazer parte da prática clínica rotineira de qualquer médico. Uma tentativa de suicídio é um ‘pecado’, talvez o pior deles” (ABP, 2014, p. 10). Não se deve ter medo ou vergonha de discutir abertamente sobre o assunto, embora se saiba que um tabu, arraigado na cultura por séculos, não desaparece facilmente e sem esforço conjunto: o tabu inibe a busca por ajuda, aumenta a falta de conhecimento e atenção sobre o assunto e tende a alimentar a ideia errônea de que o comportamento suicida não é um evento frequente, levantando barreiras para a prevenção. “Lutar contra esse tabu é fundamental para que a prevenção seja bem-sucedida” (ABP, 2014, p. 12).

Além da identificação dos fatores de risco, é fundamental a preparação dos profissionais da saúde e das demais áreas sobre a “identificação de pacientes potencialmente suicidas, pois essa é a forma mais eficaz de prevenção” (RIBEIRO et al., 2018, p. 1086). É importante avaliar o comportamento suicida (por familiares, amigos e profissionais de saúde), mas, na avaliação, se deve priorizar o risco que antecede o evento e sua gravidade, identificando o início do processo que começa com pensamentos tenebrosos relacionados à morte, seguidos pela busca de como realizar o ato, até a consumação do suicídio.

Na prevenção ao comportamento suicida, a Atenção Primária à Saúde (APS) é estratégica: ela estabelece o contato inicial, preferencial e se elege como centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), devido à proximidade e vínculo com os indivíduos na comunidade, o que tende a facilitar a identificação precoce de situações de vulnerabilidade, além de possibilitar a intervenção imediata da equipe multiprofissional(BRASIL, 2013; FERREIRA et al., 2018).

Na esfera da Psicologia clínica, o “suicídio pode ser compreendido como resultado de uma intensa dor psíquica, um ato que pode ser inserido no campo da psicopatologia” (TORO et al., 2013, p. 411). O trabalho de detecção e avaliação parte da análise das causas que precipitaram o suicídio (ou tentativa de suicídio) em busca das motivações internas do ato, como situações de conflito e sofrimento vividas pelo sujeito (CFP, 2013).Em geral, quando algum elemento atual dispara um sentimento devastador capaz de provocar um suicídio, geralmente é porque o indivíduo reedita uma situação anterior de sofrimento, tornando intolerável o momento atual; nessa condição, o suicídio simboliza uma saída, uma solução, uma possibilidade de aliviar, em definitivo, a dor psicológica insuportável e o sofrimento (RIBEIRO et al., 2018). A depressão é, em geral, um fator precipitante, associada a “situações de perda do objeto idealizado, que pode ser experimentada como abandono, decepção, desapontamento, desilusão” pela incapacidade de o sujeito atender às exigências de seu ideal. A depressão e a angústia são experimentadas no corpo, e o “sujeito deprimido é aquele mergulhado numa angústia desmedida, angústia materializada no corpo sob a forma de dor. Dói o corpo, dói o peito, dói a alma” e “matar-se seria a única forma de livrar-se” da dor (CFP, 2013, p. 33).

Segundo Botega et al. (2009), há estágios no desenvolvimento da intenção suicida. Inicia-se com a imaginação (contemplação da ideia suicida), caminha para um plano de como se matar (com ou sem ensaios realísticos ou imaginários) até a execução de uma ação destrutiva concreta, embora esse percurso dependa de múltiplas variáveis. São três as características próprias do estado das pessoas sob risco de suicídio: 1) ambivalência: atitude interna, dilemática, conflito interno entre o desejo de morrer/se matar e o de ficar vivo (MARCOLAN, 2018), e a prevenção atua sobre o desejo de vida (este dilema provoca dor psíquica); 2)impulsividade (transitória ou duradoura): o suicídio como ato impulsivo, desencadeado por eventos do dia a dia; 3) rigidez/constrição: estado cognitivo sufocante, de estreitamento, dicotômico (tudo ou nada), suicídio como solução única, embora drástica, morte como caminho único, opções disponíveis limitadas. O psicólogo necessita estar atento e identificar as frases ou expressões de alerta, por trás das quais estão os sentimentos apontando para o desejo de suicídio: depressão, desesperança, desamparo e desespero (regra dos 4D) (BOTEGA et al., 2009).

Ao psicólogo cabe investigar e conscientizar-se de que existem fatores de risco diversos para o suicídio (como um transtorno psiquiátrico, brigas ou conflitos familiares, perda de emprego, dentro outros) que fomentam uma vulnerabilidade psíquica a ser compreendida e considerada. Em se tratando da saúde pública, o psicólogo pode intervir a partir do momento em que se vê qualificado o suficiente para compreender o fenômeno e identificar fatores que levam ao risco do suicídio.

O comportamento suicida pode ser prevenido, mas necessita de um bom planejamento e da criação de programas que envolvam profissionais qualificados de diversas áreas (CFP, 2013). Por sua vez, a comunidade deve ser trabalhada conjuntamente e convidada a participar de modo efetivo: profissionais da saúde e voluntários podem implementar algum trabalho nos bairros, templos ou igrejas, organizações não governamentais(ONGs), clubes (de serviço ou lazer),dentre outros. A prevenção do comportamento suicida representa um grande desafio para o psicólogo, a sociedade, poderes organizados (político, econômico, social).Apesar das dimensões complexas em que se enquadra, o suicídio pode ser prevenido, quer com intervenções individuais, quer coletivas de diagnóstico, atenção, tratamento e prevenção a transtornos mentais, ações de conscientização, promoção de apoio socioemocional, limitação de acesso a meios, entre outras (MS, 2021; WHO, 2014, 2023). Basta lembrar que a OMS, segundo Viana (2023), considera que 90% dos casos de suicídio podem ser evitados, desde que “existam condições mínimas para oferta de ajuda voluntária ou profissional”.

REFERÊNCIAS

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Nota do autor: Este artigo foi elaborado a propósito doSetembro Amarelo, tendo o Dia 10 do mês, oficialmente,como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio.Setembro Amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio, cujo objetivo é promover a conscientização da população acerca deste fenômeno, a fim de prevenir e reduzir o alto índice de suicídio no País. Também busca orientar para o tratamentoadequado dos transtornos mentais, que estão relacionados a 96,8% dos casos demorte por suicídio.Na prática, a campanha dure todo o ano.

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