Os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) podem excluir da Lei de Segurança Nacional os trechos usados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (em partido) para investigar opositores e manifestantes que protestam contra o chefe do Executivo.
A análise feita em reservado por integrantes da corte é que o governo federal tem dado uma interpretação muito expansiva, principalmente, ao artigo 26, que fixa pena de 1 a 4 anos de prisão para quem caluniar o chefe de um dos Três Poderes.
O artigo 18, usado pelo Supremo na prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), por sua vez, deve ser mantido.
O dispositivo prevê detenção de 2 a 6 anos a quem tentar impedir o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados.
A Lei de Segurança Nacional é de 1983 e foi sancionada pela ditadura militar. O uso recorrente da norma neste ano levantou novamente o assunto sobre o tema e, desde março, ao menos quatro ações contra a legislação foram protocoladas no STF.
A visão de ministros é que o Supremo tem o desafio de barrar trechos da lei que permitem medidas autoritárias do governo para investigar críticos de Bolsonaro, mas sem invalidar toda a norma.
Isso porque a lei é vista como imprescindível para o prosseguimento dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que apuram ameaças a ministros e movimentos que defendem o fechamento do Congresso e do Supremo.
Relator das duas investigações, o ministro Alexandre de Moraes recorre com frequência à Lei de Segurança Nacional, como fez em operações contra aliados do chefe do Executivo acusados de disseminar notícias falsas. O artigo 26 também é suscitado pelo ministro.
Integrantes da corte consideram necessário manter a validade de parte da lei justamente para tipificar como crime a conduta de pessoas que oferecem risco às instituições e à democracia.
Uma parte da legislação que também é considerada problemática por integrantes do STF é o artigo 22, que estabelece prisão a quem faz propaganda de “processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”.
Ministros não discordam da previsão, mas acreditam que o governo Bolsonaro também tem exagerado ao suscitar esse ponto na abertura de inquéritos contra opositores.
Uma alternativa cogitada pelos magistrados é manter esse dispositivo da lei em vigência, mas dar a ele interpretação conforme a Constituição.
Essa é uma solução comum adotada pelo STF em julgamentos sobre a constitucionalidade de leis.
Nesses casos, o Supremo não retira aquela previsão do mundo jurídico, mas estabelece que o artigo deve ser interpretado de acordo com a Constituição e não pode, por exemplo, ser usado para violar a liberdade de expressão.
Uma ideia discutida nos bastidores da corte é declarar que não pode ser enquadrado nesse artigo, por exemplo, uma propaganda de processo ilegal contra a ordem política que não ofereça risco real ao funcionamento das instituições e da democracia.
Um dos argumentos citados por ministros em favor da norma sancionada na época da ditadura é que a maioria dos países do mundo que vivem em regime democrático tem uma lei de defesa do Estado de Direito.
Eles lembram que o Congresso até tem projetos para editar uma nova lei sobre o tema, mas acreditam que demoraria para ser aprovado e que excluir toda a Lei de Segurança Nacional agora representaria ficar sem uma legislação sobre o tema.
A compreensão é que, sem a norma, as instituições ficariam desprotegidas, pois deixaria de existir um tipo penal para pessoas que ameacem fechar um dos Poderes incitando a violência.
O relator das ações que tratam do tema é o ministro Gilmar Mendes. O magistrado pode liberar os processos para julgamento do plenário ou dar uma decisão individual antes e só depois remeter o caso para análise do conjunto da corte.
A interlocutores o magistrado afirmou que ainda está preparando sua posição sobre o tema. O presidente do tribunal, Luiz Fux, não deverá deixar o tema para o final da fila de processos aguardando pauta no plenário e indicou a pessoas próximas que não será resistente em levar as ações a julgamento.
Há ao menos quatro processos questionando a legislação no STF. A primeira foi apresentada pelo PTB, partido aliado de Bolsonaro, logo após a prisão de Daniel Silveira.
A sigla pede a suspensão integral da lei e afirma que a norma tem “essência autoritária” e é incompatível com o regime democrático.
A legenda diz ainda que a Constituição não menciona a existência de crime contra a segurança nacional e se limita a penalizar ações de grupos armados contra a ordem constitucional e que tenham como objetivo alterar à força o atual modelo do Estado.
A AGU (Advocacia-Geral da União) se manifestou no processo no sentido oposto e afirmou que toda a lei deve ser mantida.
O órgão que faz a defesa judicial do governo enviou a petição ao Supremo em mensagem assinada pelo presidente Jair Bolsonaro.
O texto diz que a legislação não viola a liberdade de expressão porque ela já está assegurada na Constituição.
“Interpretada sob a ótica constitucional e amoldada ao regime democrático sobre o qual se sustenta o Estado brasileiro inaugurado em 1988, a lei demandada é compatível com a Constituição Federal de 1988.”
Assim como o PTB, o PSDB também apresentou ação ao STF para que toda a lei seja derrubada. O PSB, por sua vez, pede a suspensão de 11 trechos da lei e a preservação do restante.
“Embora sejam relevantes as críticas mais amplas dirigidas à lei promulgada nos estertores do regime ditatorial, com resquícios autoritários, penso que não podemos prescindir de alguns dispositivos da lei que estabelecem importantes mecanismos de defesa das instituições contra ataques virulentos de natureza antidemocrática”, afirma Ademar Borges, um dos autores da ação.
O outro processo em curso na corte sobre o tema foi movido em conjunto pelos partidos PT, PSOL e PC do B. As siglas solicitam a suspensão de parte da lei e também dos inquéritos abertos com base nesses dispositivos.
A intenção das legendas é que sejam anuladas as investigações contra críticos de Bolsonaro. Os partidos querem que o relator dê uma decisão individual sobre o tema e justificam que há urgência no caso devido às iniciativas da atual gestão.
“O perigo da demora é abstraído dos inúmeros episódios que vem ocorrendo pelas autoridades públicas que, sobretudo em razão de críticas promovidas contra o presidente da República Jair Bolsonaro, estão conduzindo diversas pessoas a delegacias para prestarem informações a respeito de possível cometimento de crime contra a segurança nacional.”
Um dos primeiros alvos do governo Bolsonaro em relação à adoção da Lei de Segurança Nacional foi o colunista da Folha Hélio Schwartsman.
A pedido do então ministro da Justiça, André Mendonça, a Polícia Federal abriu inquérito contra ele em julho do ano passado após ele escrever uma coluna intitulada “Por que torço para que Bolsonaro morra”. O texto foi publicado depois da notícia de que o chefe do Executivo havia contraído Covid-19.
O ministro Jorge Mussi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), deferiu habeas corpus protocolado pelo jornalista e suspendeu a tramitação do inquérito. Na decisão, o magistrado afirmou que, ainda que possam ser feitas críticas ao texto, não é possível concluir que tenha havido motivação política ou lesão aos bens protegidos pela Lei de Segurança Nacional.
O ex-governador e presidenciável Ciro Gomes (PDT) e o youtuber Felipe Neto, dois dos principais críticos de Bolsonaro nas redes sociais, também tornaram-se alvo de investigação pelos comentários feitos em relação ao chefe do Executivo.
A PF intaurou inquérito após o pedetista chamar Bolsonaro de ladrão em uma entrevista. Já Neto foi intimado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para depor de ter classificado o presidente como “genocida”.
Segundo ele, a corporação agiu com base em denúncias apresentadas pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do chefe do Executivo.
A abertura de inquérito pelo governo também atinge pessoas desconhecidas.
No mês passado, o Ministério da Justiça mandou a PF investigar um sociólogo e um empresário responsáveis por dois outdoors que comparavam Bolsonaro a um “pequi roído”.
O Ministério Público Federal, no entanto, decidiu arquivar o inquérito policial. Afirmou que as placas configuram uma posição política que deve ser respeitada devido à liberdade de expressão.
Também em março, a Polícia Militar do Distrito Federal levou à PF cinco pessoas que estavam protestando contra Bolsonaro na Praça dos Três Poderes.
Eles haviam estendido uma faixa que chamava o presidente de “genocida” devido à condução do país durante a pandemia.
Por meio de nota, a PM disse que “o grupo foi detido sob a acusação de infringir a Lei de Segurança Nacional ao divulgar a cruz suástica associando o símbolo ao presidente da República”.
O grupo ficou por cerca de seis horas na delegacia e depois foi liberado. Um deles, porém, permaneceu preso devido a um processo que respondia desde 2014 por desacato.