sexta-feira, 20 de setembro de 2024
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“Sorvete é coisa séria”

Sorvete é coisa séria. Muito séria. Tem influência direta e indireta na vida das pessoas, na delimitação da cultura de um povo, na realidade econômica de um país, no sucesso…

Sorvete é coisa séria. Muito séria. Tem influência direta e indireta na vida das pessoas, na delimitação da cultura de um povo, na realidade econômica de um país, no sucesso ou derrocada de civilizações inteiras. Por isso, não pode ser o mesmo creme doce que só muda de cor. Também não pode ser considerado a partir da cobertura que nele se derrame. Tem que ser o sorvete, só o sorvete, despido, nu e natural como veio ao mundo.

Da Tríade Sagrada — juntamente com a pizza e o pastel —, o sorvete é algo que não enche, não satura, não enjoa. Desde que seja do Natal.

Nada contra os outros sorvetes do mundo. Mas o do Natal é único. Tipo a Coca-Cola, os assados do Frangão e o “crustoli” que minha vó fazia. (Sei que tem “grostoli”, “crostoli” etc., mas minha vó falava “crustoli” — sílaba tônica no “u”, que em italiano não tem acento.)

Néctar dos deuses, há notícias de que, há pelo menos 50 anos, o Olimpo deixou a ambrosia — e o Valhala, as maçãs douradas de Freia — para substituí-la pelo sorvete do Natal. As entregas são semanais. Ou pelo menos eram.

Agora — desde o dia 21/10/2015 —, como o Bar do Natal fechou, a iguaria tornou-se algo raríssimo, artigo de luxo, verdadeira relíquia. Estão oferecendo 10 caixas de Ferrero Rocher pelo fundo de uma casquinha do Natal. Um pote daquele de R$ 20 está sendo oferecido pelo preço de um Fusca (de colecionador).

Qualquer quantidade está valendo uma pequena fortuna no mercado negro, com pessoas cobrando — e pagando — horrores por um pote de sorvete de ameixa.

Quem estocou estocou, quem não estocou não estoca mais.

Verdade é que, contra todos os comandos genéticos gravados no DNA das minhas mitocôndrias, acordei cedo no dia 19 (véspera do último dia) e fui buscar o meu último estoque particular antes do trabalho — soubera que estavam atendendo nos últimos dias em horário reduzido.

Ameixa, laranja, abacaxi e passas ao rum. Era o que tinha. Ou o que teria mais tarde — estava sendo feito. Fiz a encomenda. No mesmo dia, tranquei tudo no congelador.

Quando o meu estoque se tornou minimamente conhecido, todo mundo começou a se convidar para me visitar em casa. Fui assediado, extorquido, ameaçado.

Não cedi.

Em casa, quando percebi, estava dizendo “My preciousss…”, com a colher na mão e o olhar fixo no pote cujo conteúdo diminuía, diminuía.

No sábado veio visita em casa e — confesso — nem comentei que ainda tinha um pouco. E se eles pedem?!

Um dos inúmeros detalhes do sorvete do Natal é a receita secreta. Nem o Edward Snowden sabe. Foi a partir daí que a ONU e a Wikipédia definiram a lista das receitas mais protegidas do mundo: o ingrediente secreto da Coca-Cola, o

tempero do frango assado do Frangão e a receita do sorvete do Natal.

Corre o boato de que as outras sorveterias da cidade estão comemorando. Bobagem, elas sabem que não há competição. Não adianta.

As outras — aqui fica o meu sincero respeito — só têm uma pequena chance de concorrência diante da absoluta ausência do Natal. Sem isso, nunca.

Pois a diferença entre o sorvete do Natal e os outros é tipo Usain Bolt e eu. Correndo. Sebastião Teixeira e eu. Cantando. Luis Fernando Verissimo e eu. Escrevendo. Menos dormindo, porque aí eu ganho de todos.

Também parece que há nutricionistas celebrando: seriam muitas calorias a menos. Ilusão que derreterá mais rápido do que sorvete do Natal. A depressão coletiva por causa da crise de abstinência virá com tamanha fúria que todos se afogarão em farinha láctea e chocolate para vencer a ansiedade. Vai haver gente matando pelo último pote de sorvete. Zumbis em crise de hipoglicemia — algo muito pior que “The Walking Dead”.

Gente que, nascida aqui, mudou-se de Fernandópolis, vários conhecidos, pessoas de fora da cidade não acreditam. Me ligam, me mandam e-mails e mensagens. Mais que saber se é verdade, perguntam se eu tenho um pouco.

Mas acabou. Pouco antes de eu escrever este texto. Nesta noite chuvosa de terça, quando o finalizo, só restou a lembrança.

E se é o “Nosso” Bar, como coproprietário, eu deveria ter sido ouvido antes de tomarem a decisão de fechar. Ainda mais eu, para quem “véspera de Natal” era quando meus pais diziam: “Amanhã a gente toma sorvete”. Só me faltava agora o Frangão também anunciar que vai parar de fazer frango assado, costela e cupim no bafo…

Fica aqui a mensagem ao pessoal do Bar do Natal — que nunca vendeu tanto sorvete em tão pouco tempo —: adoramos a estratégia de marketing. Já podem voltar a abrir normalmente, ok?

O Bar do Natal fecha, perdemos a dona Ana Rosa (criadora do insuperável bolo de morango e leite ninho de massa branca), eu consigo fazer dois exercícios seguidos do jeito que a minha fisioterapeuta pede.

São mais sinais do fim dos tempos.

O. A. SECATTO

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