O nosso ritmo exagerado para “vencer na vida” – dinheiro, estabilidade e segurança,nos desgasta, exigindo descanso, férias.
Numa dessas, fomos ao Rio Araguaia, em companhia dos cunhados Maurício, Maurinho e Saint-Clair. Pouco peixe, muito trabalho, mas um deslumbramento pelo rio e seu entorno, especialmente as “gargantas”, corredeiras e cachoeiras, “quase virgens”, ainda sem terem sido “estupradas” pelo animal racional (?).
De lá, fomos visitar um conhecido dos cunhados – o Miro, que morava às margens do rio Paraíso, cerca de 40 Km adentrando os sertões da antiga Rio do Peixe, hoje Doverlândia, em Goiás. Local ermo e humilde, sem eletricidade; a casa tinha 4 cômodos, chão batido, telhado de sapé, e as camas – colchão de palha de milho sobre varas roliças. Ao lado da “sede”, numa casinha, cômodo único, 3X2m, morava o “seu” Davi, que vimos de relance.
O rio Paraíso estava a pouca distância. A troca de novidades, o delicioso jantar à banha de porco, e o cansaço, encurtaram o caminho até às camas improvisadas, no chão. De manhã, tomamos um café “valente” – é o que vem “sozinho”, e encontramos “seu” Davi, à porta de seu rancho, lendo um livro; “puxei” prosa, e ele logo me surpreendeu e me deixou envergonhado: o livro era “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, que ele modestamente disse que havia lido duas vezes; dentro do seu barraco visualizei centenas de outros livros universais, os quais eu, “universitário e doutor de cidade”, só havia procurado conhecer apenas títulos e autores por ocasião de provas escolares ou do vestibular.
Seu Davi contou sua história: – cartorário em uma cidade da região, prestes a se casar, viu fracassar tragicamente seus planos futuros e o seu quase casamento. À beira da loucura e/ou do suicídio, abrigou-se na casa de Miro, onde vinha sempre pescar.
Inicialmente pela frustração e necessidade de isolamento, volta-se unicamente às suas dores, à leitura e pescarias. Culto e sensível, após certo tempo de paz e contato com a precária realidade, dói-lhe a consciência ao perceber o quanto poderia ser útil, e decide ser o professor dos semi e analfabetos dali e da região, quase todos iguais aos “Miseráveis” retratados pelo livro que estava relendo.
Afirmou-nos ele, com lágrimas de contentamento que, em pouco tempo, suas lamúrias e tristeza foram se transformando numa plena paz de espírito. Resolveu ficar em definitivo, abandonando tudo da cidade. Do Miro, recebeu em troca a casinha, o direito de plantar em uma quarta de alqueirão e de participar da mesa da família.
Sua sala-de-aula era ao ar livre, com lousa de tábua escura de um lado e caiada de branco do outro, para uso de carvão quando o giz acabasse; os alunos vinham de todos os lados, à pé ou a cavalo. Sentados em pranchas, os alunos aprendiam e absorviam, além do alfabeto, o exemplo e a força da simplicidade e da sabedoria de seu mestre, a moldar-lhes o caráter.
Creio que sem querer, mas igualmente admirável, “seu” Davi imitou Sócrates, o maior dos filósofos gregos, que ensinava na “Academia” – um local ao ar livre, entre árvores e jardins. Sócrates mudou homens e o mundo para melhor. O nosso Davi mudou as mentes e o “mundinho” dos sem-escola do Sertão do Miro.
Perguntei ao “seu” Davi se estava feliz; ele, sorrindo, com prazerosa convicção, afirmou: – “ Sim, muito, porque além de tudo ainda tenho o Paraíso!”.
Jesiel Bruzadelli Macedo
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