Ir para a escola e assistir aulas em outro idioma, não conhecer a própria história, aprender a história de outro povo e ter exemplos estranhos à realidade em que se vive é uma situação que parece irreal. No entanto, é assim que são educadas muitas crianças e jovens indígenas. Os últimos dados do Censo Escolar de 2015, do Ministério da Educação (MEC), mostram que pouco mais da metade, 53,5%, das escolas indígenas têm material didático específico para o grupo étnico.
De acordo com especialistas, não são raras as situações em que os indígenas não têm acesso a materiais na própria língua, que utilizam produtos elaborados para outra etnia que não a sua, ou mesmo que aprendem com livros que trazem, para facilitar a lição, elefantes e girafas, animais completamente desconhecidos na Amazônia, por exemplo.
Os indígenas são 0,47% da população brasileira, 817.963 habitantes, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 em áreas urbanas, mostram os resultados preliminares do Censo Demográfico feito pelo IBGE em 2010. Pertencem a cerca de 305 etnias e falam 274 línguas.
“A educação indígena apresenta os mesmo desafios [de inclusão escolar, desempenho e evasão] da educação básica, com grau de dificuldade ainda maior pela especificidade de atendimento a essas populações. O grande número de diferentes grupos indígenas coloca uma dificuldade adicional”, diz a superintendente do programa Todos Pela Educação, Alejandra Meraz Velasco. “Certamente, a desigualdade não aparece apenas nesses itens, a qualidade da educação está comprometida como um todo”, acrescenta.
Desde 2010, o uso de material didático específico para esse grupo étnico cresce com pequenas oscilações, segundo levantamento do Todos pela Educação, com base nos dados do MEC. Nesse ano, 50,5% das escolas tinham material didático específico. O percentual chegou a 56,7% em 2013. Em 2014, no entanto, houve queda – 50,6% das escolas tinham esse material.
Materiais de outra etnia
Sem material didático específico, os estudantes da aldeia Sowaintê, em Rondônia, usam livros da etnia tupinambá, da Bahia. “São contextos bastante diferentes, cada povo tem sua história e cultura, não somos iguais. Fazer material didático só para uma ou outra não é certo, acabamos trabalhando a história de outro povo, não a nossa”, diz Ivonete Sabanê. Com 29 anos, ela é professora do 4º e 5º anos na aldeia.
Ivonete decidiu lecionar para atender às necessidades de sua comunidade. Hoje, é aluna do curso de licenciatura em educação básica intercultural para povos indígenas na Universidade Federal de Rondônia (Unir). Juntamente com os alunos, ela montou um livro com desenhos e textos sobre a história do próprio povo. Agora, quer transformar a experiência em material didático para ser trabalhado na aldeia. “Serve para depois, quando os mais velhos não estiverem mais aqui, [os mais jovens] entenderem toda a história do povo, porque ela estará registrada. Eles poderão repassar para as novas gerações e também aprofundar, procurar saber mais”.
“Ainda há muita necessidade de produzir vários tipo de materiais. Quando um povo decide trabalhar seu conhecimento oral na forma de escrita, precisa de vários materiais. Primeiro da alfabetização e depois da sequência dessa formação”, diz o doutor em linguística Joaquim Mana Hunikuin. Ele nasceu na aldeia Praia do Carapanã, no Acre, e hoje trabalha em Rio Branco, como técnico da Secretaria de Educação do estado.
“Vejo que os povos têm a mesma necessidade”, diz, “Povos falantes que querem produzir o seu material didático precisam ter esse conhecimento técnico científico para analisar a própria língua e definir a língua a ser usada na escola. Do material que vem de fora, se aprende a língua portuguesa”.
Ele comenta que há livros que chegam às aldeias que não condizem com a realidade da população. “Há livros que vêm de fora, há imagens desconhecidas. “Na região amazônica, as crianças não conhecem elefante, girafa. Mesmo não entendendo a lógica desses personagens, a ideia é aprender a ler e escrever a língua portuguesa”.
Joaquim Hunikuin informa que há a intenção no estado de produzir materiais específicos, mas o contexto econômico não está favorável e não há recursos para a edição desses materiais.
A coordenadora do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília (UnB), Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, chama a atenção para outra questão, a formação de professores. “Material didático somente não adianta. Os professores têm que ter formação adequada para usar esses materiais. Uma escola pode ter muitos materiais para ensino da língua nas escolas indígenas, mas se não tiver treinamento, se os professores não souberem como fazer, não adianta ter material, que não vai servir para a educação indígena”, afirma.
Ministério da Educação
De acordo com o MEC, o índice de escolas com oferta de materiais didáticos específicos oscila, por um lado, devido ao aumento de escolas indígenas a cada ano. Em 2012, de acordo com o Censo Escolar, eram 2.954 escolas; em 2013, 3.059; em 2014, 3.056; e em 2015, 3.085. Por outro lado, “a tiragem desses materiais, em muitos casos, é pequena”, diz a pasta.
O MEC acrescenta que os materiais didáticos e paradidáticos têm se caracterizado por ser de autoria indígena e produzidos em contextos de formação de professores indígenas no magistério intercultural de nível médio e nas licenciaturas interculturais indígenas. “De modo geral, os materiais produzidos ainda se destinam ao letramento e aos anos inicias do ensino fundamental, havendo grande lacuna para os anos finais e o ensino médio”.
Para o ministério, o grande desafio é ampliar a oferta de toda a educação básica nas escolas indígenas, tendo como estratégia a formação de professores nas licenciaturas interculturais indígenas, que habilitam os docentes nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Essas licenciaturas, de acordo com o MEC, são desenvolvidas em 20 instituições de ensino superior públicas e habilitaram, até 2015, 1.961 professores indígenas.