A psicopatia é, habitualmente, associada a uma psicopatologia caracterizada por falta de empatia, manipulação, agressividade, impulsividade, egocentrismo, crueldade, criminalidade (Arfeli; Martin, 2023). Embora seja um dos transtornos mentais mais intrigantes e cruéis, a psicopatia não se enquadra na visão tradicional de doença mental (Santos, R., 2023). Bertoldi et al. (2014) a retratam como transtorno de personalidade, descrito também por déficit moral, mentira patológica e violência. Ligada a várias áreas da personalidade, quase sempre associada à ruptura pessoal e social, a psicopatia refere uma “anomalia do desenvolvimento psíquico […] como perturbação da saúde mental […] a desarmonia da afetividade e da excitabilidade com integração deficitária dos impulsos, das atitudes e das condutas, manifestando-se no relacionamento interpessoal” (Morana; Stone; Abdalla-Filho, 2006, p. S75).
Embora esteja envolta em conceitos controversos, a psicopatia é frequentemente empregada para descrever um agravo do transtorno da personalidade antissocial (TPAS), com um padrão de comportamento invasivo, desrespeitoso e violador dos direitos alheios (Nunes et al., 2019; Oliveira, 2023). Revela-se em atos “ilegais, fraudulentos, exploradores e imprudentes para ganho pessoal ou prazer e sem remorsos” (Zimmermann, 2023, p. 1). Como TPAS, é caracterizada por um padrão generalizado de descaso com as consequências provocadas aos outros, justifica ou racionaliza comportamentos (o perdedor merece perder), culpa a vítima (que é tola, impotente), manifesta indiferença aos efeitos da exploração alheia e aos prejuízos de suas ações (Zimmermann, 2023).
Atualmente, “psicopatia” é sinônimo de personalidade dissocial, marcada pelo desprezo das obrigações sociais, falta de empatia para com os outros, desvio entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas; baixa tolerância à frustração e baixo limiar de descarga da agressividade, da crueldade, da malignidade e da violência; tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para um comportamento conflituoso com a sociedade. Segundo Hauck Filho, Teixeira e Dias (2009), a psicopatia, como comportamento antissocial, associa-se a traços disruptivos de personalidade, isto é, é síndrome que combina traços de personalidade e conduta socialmente desviante (Bins; Taborda, 2016; Fernandes; Moucherek, 2023). Trata-se, pois, de distúrbio mental grave, um desvio de caráter como um transtorno da personalidade com traços de comportamentos antissociais (Magri et al., 2016).
Bins e Taborda (2016), Magri et al. (2016), Costa, H. (2019), Nunes et al. (2019), Arfeli (2021) e Fernandes e Moucherek (2023) identificam, no diagnóstico da personalidade antissocial do psicopata: ausência de delírios, de nervosismo e de manifestações psiconeuróticas (é calculista) e outros sinais de pensamento irracional; desprezo persistente pelos direitos dos outros e pelas leis; é enganador ou dissimulador, não confiável; tende à mentira compulsiva, crônica (como instrumento de trabalho), ao despudor e à insinceridade; ludibria por ganho pessoal ou prazer, por falta de ética e por egoísmo desmedido; age impulsivamente, é facilmente agressivo, imprudente; desdenhoso, despreza a própria segurança ou a segurança dos outros; não sente remorso e racionaliza a agressão ou maus-tratos.
Hauck Filho, Teixeira e Dias (2009), Bins e Taborda (2016), Baptista e Silva Júnior (2020), Penkal e Caron (2023), Fernandes e Moucherek (2023), Oliveira (2023), Zimmerman (2023), entre outros, acrescentam ao comportamento do psicopata: assédio, roubo, fraude, manipulação para conseguir o que deseja (dinheiro, poder, sexo etc.) e uso de subterfúgios (como pseudônimo) para dissimular e não ser identificado. Instável e irresponsável social e financeiramente, troca de emprego sem perspectiva de um novo trabalho, ignora oportunidades. É relapso nos compromissos (p.e., não paga suas contas), irrita-se com facilidade; propenso à agressão física e abusos, não se intimida. Sem empatia pelos outros, é indiferente ao sofrimento e direitos alheios. Pode ser teimoso, autoconfiante, arrogante; costuma ser volúvel e verbalmente superficial para conseguir o que quer e manter um padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos alheios.
Os psicopatas tendem a apresentar-se como lisonjeiros e grandiosos, usam as pessoas como objetivos à própria gratificação; têm estilo de vida parasita, é pobre capacidade de empatia (Bins; Taborda, 2016): motiva-os a busca do próprio prazer de forma imediata. Nunes et al. (2019, p.181) reforçam: A indigência empática é marcante em indivíduos com TPAS e aliada à ausência de medo, ajuda a explicar por que esses indivíduos violam facilmente os direitos dos outros, sem remorso, vergonha ou culpa, embora cientes de seus atos. Sem afetos e emoções sinceros (Arfelli, 2021), com o afeto e a empatia prejudicados (Santos, R., 2023), sentem-se estimulados a prejudicar os outros para realizar seus intentos, mesmo que recorrendo a agressões violentas,
Merecem destaque alguns sinais evidenciados pelo psicopata: charme superficial e boa inteligência (encanta para alcançar determinado objetivo); falsidade nas relações, deslealdade; sem apego emocional, incapacidade de amar; egocentrismo patológico, impaciência e reações explosivas quando contrariado. E mais: juízo empobrecido e pobreza emocional generalizada (sem reações afetivas), perda de insight, carência de reciprocidade, vida sexual impessoal, trivial e pobremente integrada (Magri et al., 2016; Costa, H., 2019; Genovez; Lemos; Sardinha, 2019; Arfeli, 2021; Silvestre, 2021; Fernandes; Moucherek, 2023).
Um psicopata não é considerado louco, não apresenta desorientação ou desordem cognitiva nem deficiência de raciocínio, não sofre delírios ou alucinações nem apresenta sofrimento psíquico intenso (Magri et al., 2016). Na maioria das vezes, é indiferente, impassível, lúcido, sem aparentar qualquer sinal de mente doentia ou adoecida (Santos, C., 2023). Parece não sentir ansiedade, tensão ou conflito, mesmo que seu comportamento esteja seriamente perturbado e, embora consciente das diferenças entre o certo e o errado, infringe normas e costumes sociais mantendo um visão narcisista com um ego inflado. Loquaz, de oratória envolvente, reporta histórias mirabolantes com o intuito de convencer ou cativar o ouvinte (Mariano; Alves, 2022).
Também não é um psicótico ou doente mental: faltam-lhe sentimentos morais, como compaixão e culpa (Santos, 2013), não tem escrúpulos ou pudor em cometer crimes. Embora conheça esses sentimentos, vivencia-os de forma puramente intelectual: “Quanto maior a sua frieza moral, maior a sua habilidade de manipular as emoções dos outros, usando-as para os seus próprios fins […] malignos e criminosos” (Carvalho apud Lobaczewski, 2014, p. 7). Impõe-se por sua agressividade; sua insensitividade moral corrói o tecido das relações humanas e faz da vida um inferno; sua sintomatologia histérica implica a adaptação de mentes menos ativas às novas regras e valores – o histérico não diz o que sente, mas passa a sentir aquilo que diz.
Nas nosografias psiquiátricas atuais, CID-11 (F60.2) e DSM-5-TR, a psicopatia enquadra-se entre os Transtornos Disruptivos, do Controle de Impulsos e da Conduta e se agrupa entre os transtornos da personalidade dissocial, sendo denominada “transtorno da personalidade antissocial” (APA, 2014, 2022). Sua caracterização nosológica a difere da doença mental por não revelar a existência de sintomas associados a delírios, alucinações ou qualquer forma de prejuízos intelectuais (Arfeli; Martin, 2023). A psicologia criminal a trata como um “desequilíbrio psicológico e um transtorno antissocial da personalidade que pode afetar o comportamento social do indivíduo” (Santos, R., 2023, p. 9), mas não como doença mental ou retardo. Entre as personalidades antissociais, muitos indivíduos manifestam características mais agravadas, intensas e frequentes: seriam mais insensíveis, cínicos, desrespeitosos, manipuladores, sem consciência moral e completamente desprovidos de empatia (Magri et al., 2016; Zimmermann, 2023).
Psicopatas podem ser encontrados em qualquer cultura, sociedade, credo (seitas religiosas), espectro político ou nível financeiro (Ely et al., 2014). Infiltram-se em todos os ambientes sociais e profissionais, “camuflados de executivos bem-sucedidos, líderes religiosos, trabalhadores – pais e mães de família, políticos etc.” (Silva, 2018, p. 37). São habilidosos no convencimento, podendo agir na vida de suas vítimas e causar muito sofrimento às pessoas de seu convívio que podem, às vezes, cometer assassinatos (Silva, 2019).
Dentro do espectro religioso, os psicopatas são capazes de insuflar valores e normas de uma cultura religiosa que contribuem para a eclosão de doenças mentais, com variações entre diferentes culturas e classes sociais (Nunes, 2015). Lobaczewski (2014) atenta para as caracteropatias (transtornos de caráter) amplamente paranoicas que deformam o caráter, a personalidade, e servem a propósitos políticos ou a alguns grupos religiosos. As caracteropatias exercem importante papel como agente patológico na gênese e na prática do mal, do descaso, do vilipêndio e da perversidade, e ocorrem – insiste Lobaczewski (2014) – em religiosos e, muito mais frequentemente, em políticos na condução das massas.
Dalgalarrondo (2007) confere especial atenção à influência das seitas religiosas sobre os transtornos mentais, as quais, de um lado, oferecem proteção a esses transtornos, enquanto outras intensificam os conflitos psíquicos entre o desejo de perfeição absoluta e os instintos. O autor destaca uma plêiade de pequenas seitas ou igrejas evangélicas, pentecostais e autodenominadas cristãs, com seu “pietismo” que valoriza uma religiosidade de caráter fervoroso, a piedade cristã, centrada na fé e na conduta moral, e o “moralismo estrito” que oprime, envergonha, culpa o pecador, mas não expõe o pecado e está muito próximo do farisaísmo.
As seitas e as igrejas, habitualmente, atraem pessoas ansiosas, deprimidas, desiludidas, sem expectativas, vencidas pelo sofrimento psíquico, como se elas se arvorassem a verdadeiros receptáculos da solução de conflitos e dos transtornos psiquiátricos, enquanto controlam, reprimem, exploram seus “fiéis” (Souza, 2012). Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a religião pode estar associada à libertação, alívio para dores psíquicas, consolo etc., também serve de instrumento à opressão, à discriminação e à perseguição de seus adeptos e fiéis, que interiorizam crenças e comungam seus “princípios” (Lotufo Neto; Lotufo Júnior; Martins, 2009).
A “religião é um fenômeno eterno”. A aceitação absoluta das “verdades básicas [e dogmas] da religião abre para o homem um campo inteiro de cognição possível, onde sua mente pode procurar pela verdade” (Lobaczewski, 2014, p. 186). A religião é ponto de libertação de impedimentos psicológicos e ganho de liberdade de conhecimentos: redescobrir valores genuínos, antigos, e religiosos alenta a busca por um sentido da vida (Souza, 2020).
No entanto a religião também pode expor falsidades e induzir transtornos mentais como alterações de pensamento, de emoções, de comportamento e do funcionamento da mente. Esses transtornos decorrem de um extenso conjunto de fatores de risco e vulnerabilidades (orgânicos, sociais, genéticos, químicos, psicológicos), como disfunções no cérebro, situações de estresse, agressões físicas ou psicológicas, perdas, decepções e de qualquer outro sofrimento que possa perturbar o equilíbrio emocional (Dalgalarrondo, 2019). Os transtornos mentais são geradores de sofrimento psíquico e prejudicam o “desempenho da pessoa na vida familiar, social e pessoal, bem como na compreensão de si e dos outros, na capacidade de autocrítica, na tolerância aos problemas e na facilidade de ter prazer na vida em geral” (Araújo; Barros, 2019, p. 317).
Dalgalarrondo (2007) salienta que os tipos de vida religiosa inculcam variados e múltiplos efeitos sobre a saúde mental, embora – há de se frisar – a doença mental preceda a religião: existe certa autonomia da patologia mental sobre a religião, de forma que uma neurose pode transformar a religião em uma construção patológica, e as psicoses podem alimentar os delírios. Muitos tipos de vida e experiências religiosos se aproximam de alguns distúrbios mentais, enquanto outros tipos possibilitam o afastamento do transtorno mental, isto é, há um estilo de vida religiosa regressivo e patológico e outro estilo de vida que proporciona a formação progressiva de personalidades sadias (Monteiro et al., 2020).
Todavia, psicopatologia, desequilíbrios familiares e relações desumanizadas e fragilizadas são fatores predisponentes ou contributivos à corrupção e depravação da vida religiosa, transformando-a em neurose. Com frequência, pessoas com transtornos psicóticos são religiosas ou possuem algum traço de espiritualidade. Freud acreditava que a religião causava sintomas neuróticos e, possivelmente, até mesmo sintomas psicóticos (Koenig, 2007). Segundo Freud (2011, p. 67), “religião seria assim a neurose obsessiva universal da humanidade […] Se, por um lado, a religião produz restrições obsessivas apenas comparáveis às da neurose obsessiva individual, por outro, ela contém um sistema de ilusões de desejo com recusa da realidade”. As crenças religiosas tinham suas raízes em fantasias e ilusões e poderiam ser responsáveis pelo desenvolvimento de psicoses – uma visão negativa de religião no campo da saúde mental que permaneceu até os tempos modernos (Koenig, 2007).
A religião promete garantir paz ao homem diante das agruras e dos altos e baixos da vida, estabelece preceitos e restrições ao convívio social, confia-lhe conforto na desventura e e cumpre suas três funções, as mesmas desempenhadas pelos pais na infância de qualquer pessoa: informar, proteger e educar – o que os crentes também esperam que Deus realize (Santos, 2018). A ilusão seria “uma produção psíquica oriunda do mundo dos desejos. E será a força do desejo que mantém engendrada a produção de ilusões” (Santos, 2018, p. 86). Mas as ilusões (que servem aos interesses da cultura e realizam uma série de desejos humanos), sobrepondo-se à realidade, ou negando-a, imprimem sofrimento psíquico e debilidades ao religioso: o excessivo apego à religião, sua defesa apaixonada e cega, rígida, intolerante, como no fanatismo religioso, são o locus e o tempus de que os psicopatas desfrutam para, em proveito próprio, explorar o sofrimento psíquico e impingir novas dores e suplícios aos fiéis (Santos, 2018; Fernandes, 2024).
A disciplina religiosa – que oferece um senso de moral e ética, com valores imprescindíveis ao ser humano como respeito, honestidade, compaixão e responsabilidade, mais ligada ao social e ao emocional – e o controle da vida afetiva pela religião conseguem prover uma vida considerada mais saudável às pessoas (Costa, R., 2019). Em contrapartida, a falta de crença ou de uma religião tende a aportar uma pessoa astuta, manipuladora, transversa, impassível e, por vezes, bárbara e cruel (Dalgalarrondo, 2007; Bernardi; Castilho, 2016). Sob este viés, pode-se considerar que ateus se inclinam a apresentar mais traços de psicopatia do que religiosos: a falta de crenças (ateísmo) está associada a certa racionalidade de pensamento, característico entre psicopatas, mas não exclusivo deles (Figueiredo, 2022).
Ferreira (2010) reporta que a religião – fenômeno complexo tão antigo quanto a própria humanidade – se configura em torno da ideia de uma força transcendental que rege o universo. As religiões tentam reafirmar suas crenças e convicções e legitimar verdades religiosas longamente estabelecidas com argumentos puramente emocionais, baseados na fé e, geralmente, não permitem abertura ao diálogo e à compreensão de ideias novas ou contraditórias ao que foi estabelecido como verdade.
Religião é institucional, doutrinária; religiosidade é prática, envolve sistema de culto e doutrina compartilhada por um grupo, relacionada ou não com uma instituição religiosa; espiritualidade é sentimento pessoal, uma dimensão inerente a todo ser humano, ligada a um significado e propósito da vida, sem domínio da religião ou de movimento espiritual (Gomes; Farina; Dal Forno, 2014). Murakami e Campos (2012) ressaltam que religião se caracteriza como extremamente variável e considera um conjunto de crenças, leis e ritos em busca de um poder supremo, de que o ser humano se julga dependente e por meio do qual pode obter favores e dádivas.
Os problemas espirituais, afetivos e sociais são demandas importantes na vida de qualquer indivíduo, sendo a saúde a principal delas. As pessoas buscam a igreja ou o “santuário” como um “pronto-socorro” para aliviar seu sofrimento e significar o desespero instaurado pelo adoecimento: julgam que apenas a intervenção medicamentosa nem sempre produz bons resultados (Araújo; Barros, 2019). Assim, o sagrado, a fé e a religião são buscados para mitigar o sofrimento causado pelo transtorno mental, e a religião se transforma em antídoto ao sofrimento psíquico, em rede social de apoio, quer para a cura de problemas mentais, quer para abrandamento de suas dores interiores (Reinaldo, 2012). O “santuário” passa a ser espaço de acolhimento e escuta no universo da vida: isso explica quão importante é refletir acerca da influência religiosa no acompanhamento de pessoas com transtornos mentais severos e persistentes (Dalgalarrondo, 2008).
Contudo, apoiando-se no viés da verdade absoluta piamente proclamada pela religião (ou pelo seu fanatismo), líderes religiosos ou criadores de religião (salvo raríssimas exceções), adoecidos ou por sua natureza insana, iludem e manipulam os crédulos, as “ovelhas culpadas” e necessitadas de perdão (Figueiredo; Dolghie, 2023). A partir daí, provocam constrangimentos (pessoais, morais, econômicos), subtraem bens e favores de quem os segue e neles crê: é a exploração da maldade em alto grau, da perversidade, com selvagem frieza e insensibilidade, o que significa dizer que a ideia religiosa se torna “tanto uma justificativa para o uso da força e do sadismo contra os [crentes e] não crentes, hereges e feiticeiros como um narcótico para a consciência das pessoas que colocam tais inspirações em execução” (Lobaczewski, 2014, p.188).
O psicopata sabe como despertar e apropriar-se dos sentimentos religiosos das suas “ovelhas”, tomando por base a crença incondicional, virtuosa, fantasiosa e a compaixão (que está no coração da espiritualidade), simulando compartilhar do sofrimento alheio – o que o tornaria humano, misericordioso, complacente, como quem comunga a dor do outro. Tal comportamento, elevado ao ápice da apropriação e do cinismo, degenera e confronta diretamente com a saúde mental: a “relação entre a religiosidade e a saúde mental é frequentemente observada nas instituições de tratamento psiquiátrico, pois é notável que assim como acontece com as ‘doenças do corpo’, há uma parcela expressiva da população com transtorno mental que busca o apoio das instituições religiosas como modo de enfrentamento da doença mental, na perspectiva de tratamento e de cura” (Araújo; Barros, 2016, p. 316, grifos nossos).
Desenha-se, aqui, um quadro fértil e inusitado para o psicopata que passa a se apropriar da crença “cega” do “crente” (ou de sua religiosidade extremada) para se beneficiar, abusando do sofrimento alheio e vangloriando-se por isso (Pacheco, 2011). Ludibria-o, reforça a ilusão ou a fantasia; esquadrinha-o, explora-o ao extremo; aufere favores e vantagens. Lucra. Disfarçado em cordeiro (em “pastor de ovelhas”), o psicopata camufla seu transtorno mental (as nuances de loucura, periculosidade, agressividade, imprevisibilidade) como alguém capaz de ajudar, aconselhar, construir e manter excelente convívio social (Machado; Gouvêa, 2022). O “crente” busca alívio para a alma e seu sofrimento psíquico, e encontra a perversidade no discurso sedutor e no comportamento adoecido do líder religioso que se passa por “fiador” da existência e do plano espiritual, mas transforma a religião em uma conduta ignominiosa, má, predadora, perversa (Murakami; Campos, 2012; Sanches; Lovo; Sanches, 2020).
Os psicopatas religiosos sentem-se à vontade na (sua) Igreja e em sua vida religiosa diante de um conceito que valoriza a obediência e, em casos mais graves, a subserviência, embora, nos dias atuais, essa postura seja severamente questionada. Apregoam uma imagem distorcida em relação à fé, e o abuso do poder em nome de Deus é rotina para pastores ou líderes religiosos acometidos pela psicopatia: para eles um membro da igreja só tem valor monetário e pouco lhe interessa se vive em pecado, se merece o céu ou o inferno (Alfinyahu, 2023). Seu egoísmo exacerbado, contrariamente à natureza humana e à natureza Divina, quer a bajulação pelas suas “ovelhas”, mas as despreza como seres humanos.
As ações e reações de uma pessoa normal, suas ideias e critérios morais atingem os indivíduos anormais como sendo alguém anormal. Uma “pessoa com algum desvio psicológico se considera normal, o que é de fato significativamente mais fácil se ela possuir autoridade” (Lobaczewski, 2014, p. 182, grifos nossos), como um líder religioso. Assim, o psicopata há de considerar uma pessoa normal como diferente e, portanto, anormal, na realidade ou como resultado do pensamento conversivo. Isso explica por que o governo dessas pessoas sempre terá a tendência de tratar qualquer dissidente como “mentalmente anormal”.
Daí decorre a deturpação/corrupção do sentido de Igreja como templo cristão, como local de pregação dos ensinamentos de Cristo e dos princípios da ética cristã, que comporta um conjunto de fiéis unidos pela mesma fé a celebrarem as mesmas doutrinas religiosas. É um abuso violento contra o ser humano: o que os psicopatas da fé desejam é ser beneficiados (à custa da exploração da fé e do sofrimento humano), vangloriados, bajulados como reverendos ou adorados como apóstolos, com sua vaidade, egoísmo e orgulho inflados (Alfinyahu, 2023). Aplicados em seu “trabalho”, muitos psicopatas, inúmeros deles, camuflados, “abrem suas igrejas” em busca de ganhos pessoais, de favorecimentos, dinheiro e enriquecimento a qualquer custo, ao invés de salvar almas em apuro que clamam por clemência e piedade.
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