“Sofremos assédio até para ir ao médico. Corremos o risco de receber falta [mesmo levando atestado], e o diretor ameaça descontar um dia no pagamento” afirma Livia, professora da rede estadual paulista. Ela conta que procura atendimento psicológico desde o ano passado, mas enfrenta dificuldades para conseguir autorização para esses encaminhamentos.
O g1 coletou na última semana, depois do ataque a escola que deixou uma professora morta e quatro feridos, relatos de professores da rede estadual paulista que refletem um cenário de assédio moral cometido por diretores contra os docentes em três escolas. Segundo pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil ocupa o primeiro lugar do ranking mundial como o país que mais pratica violência contra educadores.
Para evitar possíveis retaliações, os professores citados nesta reportagem serão identificados com nomes fictícios.
“Sofremos assédio até para ir ao médico. Corremos o risco de receber falta [mesmo levando atestado], e o diretor ameaça descontar um dia no pagamento”, afirma Livia, professora da rede estadual paulista.
Ela conta também que procura atendimento psicológico desde o ano passado, mas enfrenta dificuldades para conseguir autorização para esses encaminhamentos. Suas principais queixas podem ser resumidas ao uso do poder para que o professor não exerça sua autonomia como educador.
Damares, professora temporária, não teve apoio no primeiro mês, um momento de adaptação na escola. Ela conta que um dia chegou atrasada quatro minutos, e a vice-diretora não permitiu sua entrada. Testemunhas relataram que ela sofreu abuso psicológico e tem enfrentado um quadro de paralisia facial desencadeado pelo estresse.
Em nota, a Secretaria da Educação informou que, “os casos mencionados serão apurados pelas Diretorias de Ensino. A Seduc reforça que tanto as Diretorias, quanto a sua ouvidoria estão à disposição dos servidores que desejam formalizar qualquer tipo de insatisfação”.
Perseguições
“Os professores geralmente não são escutados porque a educação é a área mais precarizada entre as pastas da política pública”, diz Pedro, professor há quase 20 anos da rede e que foi afastado das salas de aula no ano passado. Atualmente, está cumprindo trabalho burocrático em uma Diretoria de Ensino.
Seu afastamento, acredita, foi resultado da luta contra o assédio moral executado pela gestão contra alunos e professores e também contra a implementação do Programa Ensino Integral (PEI) na escola. Ele enxerga o PEI como a principal prática de precarização da educação: reduz custos e, ao mesmo tempo, diminuiria também a autonomia das escolas.
Pedro conta que em 2021 e 2022 ocorreram atos de violência em uma escola, que teriam sido executados pela gestão em resposta ao engajamento de professores e alunos.
O g1 confirmou a publicação do seu afastamento no Diário Oficial. “O próprio afastamento é um ato de assédio moral. Não tive chance de me defender, o meu ofício foi retirado. Pela primeira vez na minha vida tive que recorrer a ajuda médica. Foi a partir daí que eu senti a violência do sistema”, afirma.
Outro caso foi o do professor Fernando, que disse ao g1 que tirou do próprio bolso dinheiro para desenvolver um projeto que ganhou projeção, mas, em vez de ser valorizado, passou a ser boicotado. “A direção começou a me perseguir, eu só queria dar aula. Fui oprimido e acuado. Foram me esvaziando.”
Ele conta também que o governo mandou uma verba em 2022 para a escola comprar equipamentos de mídia. “Foram instalados, mas o diretor tirou as caixas de som, os cabos da televisão e desligava a internet. Como vou montar uma televisão sem o cabo HDMI, sem tomada?”
Procurado, o Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo (Udemo) disse que condena qualquer tipo de assédio moral e não comenta sobre denúncias anônimas. A orientação para esses casos, segundo seu presidente, Francisco Antonio Poli, é entrar com representação na própria escola contra a diretora ou o diretor, pedindo esclarecimentos.
Muito além do assédio moral
André Sapanos, membro do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), afirma que os docentes sofrem “as mais diversas formas de violência, entre elas: verbal, física, psicológica, patrimonial [roubo de pertences] e moral”
“Diante dos crescentes casos de violência física, com casos gravíssimos, existe um crescente número de professores que sofrem com ansiedade e outros problemas psicológicos, pois não se sentem seguros em seu ambiente de trabalho e tampouco valorizados para prosseguir com sua carreira.”
Uma pesquisa sobre violência nas escolas, realizada pela Apeoesp por meio do Instituto Locomotiva, demonstrou o agravamento da incidência de casos de violência e o clima de insegurança nas escolas estaduais no pós-pandemia. As principais ocorrências citadas pelos professores nas escolas em que trabalham, em ordem decrescente, são: agressão verbal, bullying, assédio moral, assalto, discriminação e agressão física.
O que dizem especialistas
Michael Fullan, um dos maiores especialistas em políticas educacionais do mundo, escreveu um livro especificamente sobre diretores de escola: “The Principal” (diretor escolar, em tradução livre). Ele defende que o papel primordial do diretor é criar uma cultura de colaboração dentro da escola. Isso evitaria que o diretor eventualmente cometesse assédio moral com professores.
“O clima dentro da escola muitas vezes não é de colaboração entre colegas e dirigentes”, afirmou Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV).
“Assim como os professores são formados de uma maneira inadequada para a prática mais complexa das profissões, que é formar crianças e adolescentes, diretores também não são formados para seus desafios”, avalia.
Alynne Nayara Ferreira Nunes, advogada e fundadora de um escritório especializado em direito educacional, destaca que “diretores não são reis”. “Eles podem ser questionados. Quem protege o professor é o sindicato, que tem um setor jurídico. A questão é: vale a pena comprar essa briga?”
Ela avalia que há uma conjuntura que fomenta uma diferenciação entre os profissionais efetivados dos temporários. “Quando não existe uma política de valorização do docente – remuneração, plano de carreira – a convivência mútua é prejudicada. Isso impacta alunos mais vulneráveis que acabam procurando acolhimento em grupos de disseminação de ódio”, opina a advogada.
Em São Paulo, um diretor vira diretor por concurso público. “Como aferir se aquele indivíduo tem habilidades para liderar um processo colaborativo em benefício da criança e do adolescente por meio de uma prova escrita? Não é assim que o resto do mundo seleciona diretores”, avalia Claudia Costin.
No Canadá, por exemplo, a seleção acontece por meio de um “search committee”, ou seja, um grupo constituído para selecionar os candidatos com base em currículo e entrevista. Normalmente, professores, gestores de outras escolas públicas e pais de alunos integram o comitê.
De acordo com Claudia, muitas vezes o professor é percebido pela opinião pública como alguém que merece pena. “E o pior é quando o professor olha para si mesmo assim, caindo nessa armadilha de que não é digno de ter orgulho das suas práticas ou de discuti-las com seus colegas. Daí a importância do papel do diretor como líder que deveria organizar um espaço para os professores aprendam juntos.”
“Também tem um outro exemplo complicado de exercício do papel do diretor que é o de fazer pactos de mediocridade: eu fecho os olhos para o que você faz e você fecha os olhos para o que eu faço. Isso não é ser um bom profissional como diretor. Ele tem que garantir que os professores tenham tempo para trabalhar, planejar e pensar juntos. Então não é só uma questão de assédio moral, é uma questão de exercício de liderança”, aponta Claudia.
“Evidentemente a função dele não é ser psicólogo, mas professor precisa, sim, entender um pouco de psicologia para atuar. Não é função dele tirar uma faca da mão de um aluno. Mas a professora Cínthia, por exemplo, fez bem [durante o ataque a escola na Zona Oeste da capital paulista]. Porque ela era a adulta na sala. Não tinha preparo profissional para isso, mas ela não tinha outra saída e por isso é admirável”, complementa.
Sobre as práticas relatadas pelos professores, Allyne sinaliza que a dificuldade de conversar com o superior pode ser configurada como um tipo de assédio moral.
“O assédio virou rotina. Vítimas só reclamam quando elas estão no limite.”