

Publicado em 1933, Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, é considerado um clássico da Sociologia Brasileira e descreve os fundamentos das relações sociais e raciais no Brasil (Cruz, 2021). A obra intenta desvendar e entender a formação social e cultural do Brasil por meio das relações entre senhores de engenho e escravos (Cardão, 2020; Lima, 2021). Sua abordagem entrecruza antropologia, sociologia e história, traz à tona as complexas interações sociais e culturais no Brasil Colonial, retrata a sociedade patriarcal como elemento estruturante da dinâmica social e econômica e explora como a convivência entre brancos, negros e indígenas moldou a cultura brasileira (Sansone; Furtado, 2014). Dessa convivência afloram antagonismos que clivam “todos os padrões de sociabilidade ali interpelados, da religião à língua portuguesa, passando pela culinária, pelas relações entre pais e filhos, senhores e escravos, pela correção dos excessos e desmandos da casa-grande em suas relações com a senzala etc.” (Dantas, 2015, p. 48).
A senzala era a habitação destinada aos escravos nas propriedades rurais brasileiras e refletia a hierarquia social existente e a exploração no sistema escravocrata (Gorender, 2016) em que a vítima era o “negro” como categoria social, ou seja, o “antigo agente do modo de produção escravista” que, como escravo ou como liberto, “movimentara a engrenagem econômica da sociedade estamental e de castas” (León; Malta, 2020, p. 375).
Sem manter um padrão, as construções da senzala eram simples, onde os escravos viviam em condições insalubres. Localizada próxima à casa grande (moradia dos senhores e suas famílias), a senzala compunha-se de alojamentos – grande parte dos quais era feita de taipa (barro) ou madeira, com telhados de palha – que “encarceravam” os escravos, sendo cada uma adaptada à realidade e às condições do engenho. Havia senzalas construídas como grandes galpões, choças ou choupanas; outras se dividiam em pequenos cômodos, alguns levantados como barracos pequenos. Podiam abrigar dezenas ou centenas de escravos que se amontoavam sem qualquer espaço para intimidades. Geralmente mal conservadas e mantidas em condições precárias, às vezes sem janelas ou camas, com escravos dormindo no chão de terra ou em esteiras de tábua, possibilitavam a proliferação de doenças e representavam o controle dos corpos e vidas dos escravos (Cunha, 2016).
A relação entre senhores e escravos não fora apenas de dominação, e se assistia a uma intensa interação cultural, afetiva e sexual, o que levou à formação de uma sociedade híbrida e complexa. A senzala simbolizava opressão, trabalho forçado, submissão, produção econômica, resistência – um espaço de subjugação dos negros escravos que, simultaneamente e apesar de tudo, encontravam formas de preservar sua cultura, identidade e as condições sociais nascidas do regime escravista, marcando os destinos da sociedade brasileira (Melo, 2010).
A casa grande simbolizava o poder patriarcal, a ordem, a autoridade e o controle; a elite colonial, os senhores de engenho e suas famílias, que detinham o controle da produção econômica e exerciam o poder político e social. O uso da força opressora era “justificada e necessária no regime da escravidão”, o que fazia com que o grupo dominante frequentemente se visse obrigado a “recorrer à violência física, quando queria alcançar seus desígnios”, de forma que a própria instituição da escravidão não podia prescindir de amplo emprego da coerção física (Nascimento; Nogueira, 2015, p. 92).
No campo, imperava livremente a autoridade do senhor, que representava a Igreja, a Justiça, a força política e militar; seu domínio era ilimitado, sem benevolência, prevalecendo a austeridade e mesmo a crueldade (Bessa, 2019). Assim, a estrutura do engenho reforçava seu poder e disciplina, sem deixar qualquer condição para a rebeldia ou reivindicações: em seu domínio, o senhor de engenho era o amo e o pai, de cuja vontade e benevolência dependiam todos, e nenhuma autoridade política ou religiosa existia que por ele não fosse influenciada (Ribeiro, 2023).
Ao explorar a formação social e cultural do Brasil Colonial pelas relações entre senhores e escravos, Casa grande e senzala expõe a mestiçagem e a interação cultural como fatores fundamentais na constituição da identidade nacional (Jesus; Silva, 2021; Marino, 2022) – mestiçagem cultural e biológica na formação da sociedade brasileira registrada entre portugueses, africanos e indígenas. Para Freyre, a mestiçagem era uma força de atuação social e psicológica mais larga e mais profunda que a própria escravidão (Soares, 2022). Freyre sugere que, mesmo diante da violência (bem como da intimidade) e do domínio colonial que a marcaram, a miscigenação se tornou fator positivo único na formação de uma identidade nacional.
A obra freyriana é ambivalente: de um lado, a sociedade patriarcal desenhada pela presença das grandes propriedades rurais (latifúndios), representadas pela casa-grande como aparelho central na vida social e econômica, em que o patriarca exercia poder absoluto sobre sua família e seus escravos; de outro, a senzala, destinada aos escravos, composta por espaços exíguos e em condições absolutamente insalubres e definida por extrema repressão, em que os escravos eram submetidos a longas e exaustivas jornadas de trabalho – à semelhança do que ocorre, com frequência, em muitos cenários identificadas na produção escrava moderna (Marinho; Vieira, 2019; Catani; Nunes, 2021) – e mesmo a castigos físicos: “sob o domínio do poder incondicional de seu senhor, [os escravos] eram submetidos aos mais violentos castigos corporais, chibatadas, estupros, castrações, amputações, fraturas de dentes, desfigurações da face, entre tantos outros” (Matos, 2019, p. 54).
Além disso, Freyre aborda a importância da cultura africana na formação da cultura brasileira, destacando as contribuições e influência dessa população na língua: na dança (frevo, capoeira, carimbó), música/instrumentos musicais (maracatu, congo; afoxé, berimbau, agogô, cuica, berimbau), religião (candomblé, umbanda), culinária (vatapá, caruru, acarajé, quitute), idioma (bagunça, moleque, cachimbo, quitanda, babaca, beleléu, cachaça, fungar, macumba, babá, dengo, borocoxô, caçamba, cochilar, mingau, banguela – apenas para citar algumas), nas práticas religiosas e em outros aspectos da vida cotidiana (Souza; Guasti, 2018; Espírito Santo, 2025).
Apesar do domínio europeu, a cultura brasileira é marcada pela contribuição significativa das cultura afro-brasileira. Segundo Freyre, a escravidão foi benigna para os escravos e para a construção da sociedade, em que pese o controle da força de trabalho pelo senhor (Sá Netto, 2011): a “contribuição do negro escravo não ocorreu apenas no campo da força bruta de trabalho, mas teria impulsionado o desenvolvimento da colônia, a partir de valores culturais remanescentes e de aplicações tecnológicas”, como na agricultura, artesanato, ourivesaria etc., trazidas da África em sua “bagagem de conhecimentos” (Pereira, 2014, p. 36). Cisne e Ianael (2022) destacam que o negro escravo exerceu papel decisivo para o início da história econômica do Brasil: sem o trabalho escravo, a estrutura econômica do país não teria existido nem teria os caminhos abertos para a atual configuração.
Na obra, Freyre também explora o papel das mulheres e dos filhos mestiços na manutenção e transformação das estruturas sociais e destaca a miscigenação como fator fulcral de mudança (Rezende, 2001). A ambiguidade de relações entre senhores e escravos era marcada tanto pela violência quanto pela intimidade (Sá Netto, 2011). Assim, senhores e escravos formavam duas esferas sociais que, mesmo separadas pelas funções, finalidades, moradias, vivências sociais etc., se interligavam profundamente e acabaram por favorecer a miscigenação e a interação cultural entre os moradores da casa grande e os da senzala que bem caracterizaram a formação distinta da sociedade brasileira. Tal miscigenação, geralmente, tem sido vista como um fator positivo na formação da identidade brasileira, com ênfase nas complexas relações sociais entre senhores e escravos no panorama do sistema patriarcal (Giarola, 2012; Carvalho, 2014). Para Sá, Coelho e Mendes (2022, p. 35), a “miscigenação está na base da organização social do Brasil. Sem sua prática, o projeto português de colonização não teria se desenvolvido com o êxito esperado”.
Em Casa grande e senzala estão colocados os fundamentos de um ambiente doméstico e patriarcal capitaneado pelo senhor de engenho. Quando se fala sobre os escravizados, não se pode esquecer daqueles que viviam no seio familiar, “reféns de todas as perversas violências inerentes ao regime escravocrata” (Soares, 2022, p. 64). As relações existentes nesse espaço aparecem como díspares na “ambiguidade” das relações sexuais, entre homens brancos e mulheres negras. A visão de Freyre lança um olhar exageradamente erótico nessas relações, sexualizando os corpos femininos negros de uma forma acentuada ou mesmo violenta, em um contexto de máxima perversidade: as mulheres negras surgem com uma sexualidade desenfreada, exacerbada e, indo mais além, com relações romantizadas, mas sem reciprocidade entre senhores e escravas (Haack, 2020).
No entanto, passam como “defeito da raça africana, transmitido ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual” (Freyre, 2003, p. 97), reafirmando, mais adiante: “o que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem” (ibid., p. 244). Freyre (2003, p. 244) aduz que “ninguém nega que a negra ou a mulata tenham contribuído para a precoce depravação do menino branco da classe senhoril; mas não por si, nem como expressão de sua raça ou do seu meio-sangue: como parte de um sistema de economia e de família: o patriarcal brasileiro”, posto que o “próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias”, eis pois que “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador” (ibid., p. 207).
Segundo Freyre, a sociedade brasileira se fundamenta no trato do senhor de engenho com o escravizado, em convívio harmônico, sem considerar as relações de abusos sexuais, psicológicos e físicos: Freyre oculta uma “realidade obscura e pinta essa exploração de maneira perfeita” (Cruz, 2021, p. 38), sem mostrar os casos de estupros e a experiência sexual de negros no Brasil, ainda que trate, de forma pouco crítica, como ocorrem essas relações entre os homens brancos e as mulheres negras (Machado; Marques, 2024).
O estupro foi o caminho para a miscigenação que, diversamente da versão romanceada proposta por Freyre (2003), expunha uma realidade dolorosa, cruciante, vivenciada pelas mulheres negras, a qual retirava toda a sua dignidade humana (Lima, 2022). Segundo Haack (2020, p. 198), os estereótipos associados às mulheres negras as “colocavam em situações de vulnerabilidade [v.g.] nos abusos sexuais perpetrados pela família senhorial e pela limitação no exercício da maternidade”: era fato que seus corpos pertenciam a outros (os senhores patriarcais brancos) – posse que incluía sua capacidade reprodutiva, a exploração da sexualidade pelo estupro e a apropriação de seus filhos.
A dominação de um humano sobre o outro, do masculino sobre o feminino, como na cultura do estupro, revela que a prática escravagista se naturaliza no imaginário social patriarcal. Embora seja o grau máximo da violência sexual, o estupro representa o preconceito em relação aos corpos negros, já que as mulheres negras eram vistas (crê-se que ainda o são), mais frequentemente, como atraentes e promíscuas, permissivas, provocadoras, contrastando com a percepção do homem negro estereotipado como estuprador (Machado; Marques, 2024). Em decorrência, no ambiente patriarcal escravocrata, as mulheres brancas viam as negras (as mulatas principalmente) como inimigas (suas concorrentes, superiores em dotes físicos): os estupros do homem branco em relação às mulheres negras eram naturalizados, assim como a retirada de seus filhos – e toda mulher sabia o que isso significava, uma vez que as mulheres brancas conheciam o horror do abuso sexual e físico, tanto quanto o significado do apego das mães e seus filhos.
Projetando para a atualidade, Lima (2022, p. 244) observa que os lugares sociais das mulheres negras na sociedade escravocrata eram “cotidianamente reatualizados e materializados na pobreza, desemprego, emprego informal, morte materna, barreiras de acesso à saúde, insegurança alimentar, hipersexualização, marginalização das esferas políticas e controle da sexualidade”. Vale rememorar que a população negra no período escravocrata era objeto e propriedade, e a condição humana simplesmente inexistia; o povo (a mulher negra em particular) era coisificado, não tinha gênero: as mulheres – os homens – eram vistas como unidades de trabalho lucrativas e, para os proprietários de escravos, poderiam ser desprovidas de gênero (Davis, 2016, p. 17), ou seja, as mulheres negras escravizadas se misturavam aos homens, trabalhando no eito, de sol a sol. O trabalho pesado nas lavouras também era atribuição das mulheres, enviadas desde crianças e mesmo grávidas ou recém-paridas; eram subalimentadas e, muitas vezes, recorriam ao suicídio, infanticídio e aborto para evitar que suas crianças não tivessem o mesmo destino – a escravidão.
Freyre situa o patriarcado como uma das ferramentas de dominação em relação às mulheres brancas, destinadas ao casamento, e ignora o lugar das mulheres negras e mulatas, marginalizadas ao racismo e ao sexismo. Isto significa reconhecer a “superioridade social da mulher branca” em contraste com a “glorificação da mulher negra” pelos seus atributos físicos, coisificadas, o que expõe indícios da “animalização e objetificação sofridas pelos corpos negros” (Cruz, 2021, p. 39). Fanon (2008, p. 147) esclarece que o “branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona”; o branco percebe a “necessidade de se defender deste ‘diferente’, isto é, de caracterizar o Outro” que representa o “suporte de suas preocupações e de seus desejos”.
Dessa forma, à mulher branca caberiam a fragilidade e o âmbito doméstico e, sobretudo, o casamento e a geração de filhos; às mulheres negras, o trabalho e o sexo. Entretanto, considera-se que toda relação sexual era estupro, diante da disparidade de poder (e coerção) entre homem branco e mulher negra escravizada, mesmo que não tenham existido relacionamentos entre senhores e mulheres escravizadas baseados no abuso e no assédio. Quando Freyre se refere às violências sexuais como “intercursos sexuais” (em que os brancos se misturam gostosamente com as mulheres de cor), ele torna invisível a brutal apropriação forçada do corpo das mulheres negras, em uma relação em que os “homens brancos são inocentados nessa violenta relação sexual não consensual ao passo que as mulheres negras são culpabilizadas”: um sadismo doentio do branco que reduz a mulher negra a um “mero objeto sexual, desumanizado à disposição do patriarca branco” (Cruz, 2021, p. 40).
A despeito dessa visão, Freyre estabelece os papéis sociais das mulheres no período colonial expresso por um ditado: “branca para casar, mulata para transar, negra para trabalhar”, que desnuda, além do convencionalismo social da superioridade indiscutível da mulher branca, a inferioridade da mulher negra destinada ao trabalho e à preferência sexual pela mulata (Francisco, 2024). Essa percepção revela um tom erótico e a “glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues, quindins e embelegos muito mais do que as ‘virgens pálidas’ e as ‘louras donzelas’” (Freyre, 2003, p. 36). Confrontando esta ideação romantizada, as escravas eram classificadas não como mães, mas como “reprodutoras” (lucrativas) cujos filhos poderiam ser vendidos e enviados para longe, à semelhança de bezerros separados das vacas. As escravas negras não tinham qualquer direito legal sobre si mesmas e sobre seus filhos: como mulheres, as escravas, açoitadas, mutiladas e estupradas, eram vulneráveis a todas as formas de coerção sexual (Davis, 2016).
Fruto da cultura patriarcal da época escravagista, ainda hoje há resquícios – quando não a persistência – de uma visão preconceituosa e estereotipada em relação às mulheres negras, que permeia diferentes aspectos, com destaque para a questão relacionada ao racismo, à sexualização e objetificação de seus corpos, o que, muitas vezes, limita o respeito e a igualdade em ambientes sociais (Viana; Santos; Exechiello, 2019). O patriarcado naturalizou a opressão feminina às negras: à mulher branca cabia o papel de mãe e esposa; à escrava negra não era conferido esse papel e, em alguns casos, restava-lhe o papel de concubina ou usada para a iniciação sexual de meninos (filhos dos senhores) que as escravizavam, abusando de seu poder e sadismo. Mais brandamente, à negra escrava cabia a função de ama de leite, além de simbolizar objeto de poder, objeto sexual e usada como mão de obra escrava.
Destaca-se, todavia, a objetificação direcionada à satisfação do prazer sexual masculino, isto é, as negras serviam para entreter e dar prazer, fornicar: pela intensa valorização de seus atributos sexuais, as mulatas e negras eram utilizadas predominantemente para fazer sexo com os homens brancos e para a libertinagem, em contraste com as mulheres brancas vistas como figuras recatadas, puras, ligadas ao matrimônio. Segundo Viana, Santos e Exechiello (2019, p. 4), na visão do homem, o corpo da mulher negra assumia utilidades, sendo procurado para a “realização de seus desejos sexuais e ao mesmo tempo era uma forma de alimentar os filhos através das amas de leite”; para o colonizador, o “corpo da mulher negra era um espaço de exploração e sensualidade”, considerada a “mulher sexo”, ou “só corpo, sem mente”.
O padrão de beleza feminino, criado desde a antiguidade, é um fenômeno em mudança permanente que perdura até os dias atuais: o fenômeno afeta a maioria das mulheres devido ao desejo incessante de alcançar a beleza imposta como correta. Se as mulheres em geral sofrem com a busca ao padrão de beleza, as mulheres negras sempre tiveram de encarar uma pressão maior, demandar um grau mais elevado de exigência e ter de superar o racismo e o machismo entrelaçados (Oliveira; Resende, 2020): além da luta por alcançar determinado padrão de beleza vigente, as mulheres negras ainda têm de superar as barreiras interpostas pelo racismo e pelo machismo que as atingem (Santos; Dias, 2022).
Atualmente, o padrão de beleza da mulher negra é voltado para o corpo “escultural”, com vistas a garantir a hipersexualização por meio de poucas vestimentas, contornos sensuais, desenhada como um ser exótico. Dela se exigem, contraditoriamente, feições torneadas, cabelos lisos, nariz e rosto afinados (nos moldes da mulher caucasiana, branca), como se fossem obrigadas a reproduzir a sociedade dominante e seus preconceitos na perpetuação de um padrão estético inatingível para a maioria das mulheres negras, um ser coisificado, com preterimento afetivo-sexual (Viana; Santos, 2019; Mizael; Barrozo; Hunziker, 2021). Essa fórmula aponta para a manutenção do antigo jargão preconceituoso da casa grande e da senzala, segundo o qual a preta serve para limpar e trabalhar, a mulata (sensualizada, hipersexualizada) é destinada a fornicar, e a branca, fechando a tríade, vista como superior às demais “raças”, é reservada para casar.
Além disso, o escravagismo trouxe profundos impactos para a sociedade e, nos dias atuais, convive-se com seu legado. As relações de poder prevalentes se revelam em produzir os corpos e uma cultura direcionada a padrões estéticos que exigem do negro a configuração de um elemento exótico. Outrossim, diante de todo o processo histórico da formação da brasilidade, os discursos de poder estiveram direcionados a atribuir aos negros a responsabilidade pelo atraso e pelas mazelas sociais (Matos, 2019).
Na atualidade, o reviver do trabalho escravo revelado como u’a “manifestação arcaica e relacionada aos rincões do espaço rural brasileiro” (Cavalcanti; Rodrigues 2023, p. 4), mas não confinada a ele, retoma a forma insidiosa da exploração de trabalhadores, não como um “fenômeno anacrônico […] à margem da modernidade capitalista; ao contrário, permanece plenamente integrado e ajustado à lógica do sistema produtivo, mantendo-se convenientemente incólume no atual estágio do capitalismo brasileiro”. Trata-se da exploração da mão de obra negra reproduzida na exploração do trabalho escravo contemporâneo como um resquício do processo escravista (Rabelo; Martins, 2020).
O trabalho escravo contemporâneo se apresenta de forma escamoteada, sob novas roupagens, novas formas de coerção como ameaças, precarização do trabalho (condições aviltantes e degradantes), objetificação dos sujeitos, violência física, exploração (trabalho forçado, jornada exaustiva), cerceamento da liberdade, escravização por dívida (e por exploração sexual) – como parte do modus operandi do capitalismo e integrante da lógica de precarização do trabalho e desumanizador da vida (Costa; Rodrigues, 2017). Sob este raciocínio, o escravo moderno tem sua liberdade privada, não por ser propriedade dos patrões, mas por tornar-se refém de sua força de trabalho e prisioneiro de dívidas e da própria condição de vida, condicionado a um intenso processo de inferiorização de seu corpo negro que mantém relações históricas com o passado escravista (Rabelo; Martins, 2020).
Neste tempo, os negros escravizados a condições extremas de trabalho, moradia e alimentação tinham seus corpos, vidas e destinos subjugados às vontades e determinações de seu senhor; modernamente, esse controle se mostra de forma mais sofisticada, e lhes são negados, muitas vezes velada ou discretamente, o acesso à educação formal, moradia, economia, política, participação social entre tantos outros meandros e instrumentos sociais, sob o apanágio da “autopercepção de um país pacífico, sem conflitos profundos e, sobretudo, tolerante”, apontando para profundas desigualdades sociais, “desequilíbrio gritante de renda e assustadoramente violenta” (Cavalcanti; Rodrigues 2023, p. 6).
O autoritarismo do passado originou uma “sociedade atual hierarquizada, machista, racista, patriarcal e profundamente desigual”, retomando situações “decorrentes da constituição e estruturação social baseada na escravatura e na distinção entre senhores e escravos, sujeitos e objetos, seres e não seres”, vulneráveis social e economicamente, em que a “desigualdade é banalizada, a exclusão é trivializada, a escravidão é naturalizada” (Cavalcanti; Rodrigues 2023, p. 6). Perpetua-se a remodelação do colonialismo histórico: “o que permanece de períodos anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente do que foi sem deixar de ser o mesmo” (Souza Santos, 2018, s/p).
Esse colonialismo insidioso é “gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo […] ardiloso”. Ele ocorre nas ruas e nas casas, nas universidades, nos supermercados e nas esquadras de polícia. “Disfarça-se facilmente de outras formas de dominação tais como diferenças de classe e de sexo ou sexualidade mesmo sendo sempre um componente constitutivo delas” (Souza Santos, 2018, s/p). Essa “coisificação do ser humano […] vai muito além da limitação de sua liberdade de ir e vir: é o esvaziamento de seu conteúdo existencial, de sua dignidade, de sua condição de ser humano” (Cavalcanti; Rodrigues, 2023, p. 10).
Bueno e Cardozo (2016) reforçam que o escravo negro se torna coisa, objeto, mercadoria – um estado ou uma condição em que perde tudo, mas, principalmente, perde sua condição social africana de origem e, agora, se vê transformado em cativo completamente desarmado. Na perspectiva atual, não se pode imaginar vender negros escravizados em mercados abertos, avaliados como um produto qualquer sem que interessem origem ou destino e sem mensurar seu sofrimento. A escravidão contemporânea, lato sensu, guarda semelhanças com a do passado, reveladas em pequenos matizes que as distinguem, como o modo de execução: antigamente, compravam-se e vendiam-se escravos, mas se preservava seu valor como “patrimônio”; modernamente, aliciam-se os indivíduos, sem preocupação com manter a pessoa escravizada porque são facilmente substituíveis, descartáveis, e cuja sedução se baseia em falsas promessas sem a garantia da manutenção de suas necessidades básicas. Apesar disso, os “escravos de hoje têm consciência de que possuem direitos, mas se submetem a condições cruéis em razão da sobrevivência” (Bueno; Cardozo, 2016, p. 8), porque o apreço e apego à vida fala mais alto.
Como herança de um passado colonial, o trabalho escravo permanece vivo no Brasil moderno (Cavalcanti; Rodrigues, 2023). Explora-se o trabalho humano, à margem do sistema capitalista, diferentemente de outras formas de exploração deste trabalho pelo aviltamento, violência, vigilância armada (por pistoleiros ou milícias). Fatores tais, entre outros, impedem o trabalhador de deixar o trabalho ou quebrar vínculo por coação pecuniária decorrente de dívidas assumidas, e se vê submetido a jornadas exaustivas que vão muito além do que o corpo humano suporta, ao esgotamento e à fadiga, a condições degradantes com indesejáveis riscos à saúde e à segurança, atingindo diretamente sua dignidade.
Ressignificado pelo apanágio de modernidade, mas sem deixar de ser ele mesmo, o trabalho escravo atual guarda semelhanças profundas com o trabalho escravo do passado: o mesmo de ontem, metamorfoseado, ou seja, superexploração da pessoa trabalhadora que lhe rouba a própria condição de ser humano, sua dignidade, sem abandonar os vícios e ranços coloniais.

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