Dizer que pescou um pirarucu nos rios da região de Rio Preto não é história exagerada de pescador. Cada vez mais frequentes de serem encontrados no rio Grande, o peixe da Amazônia, com comprimento superior a uma pessoa adulta, está tornando-se uma ameaça para espécies nativas de rios do Noroeste Paulista.
Conhecido como bacalhau do norte, o pirarucu é uma das espécies de água doce mais antigas que existem no mundo. Além de peixes, ele se alimenta de anfíbios, crustáceos e vegetais. Cobras, por exemplo, estão no banquete do peixe gigante que possui grossas escamas para impedir a penetração de mordidas de piranha.
Na região de Rio Preto, peixes da espécie estão sendo pescados, principalmente, no trecho do rio Grande, entre a Hidrelétrica de Água Vermelha, na divisa de Ouroeste e Iturama (MG), e a Hidrelétrica de Marimbondo, entre Icém e Fronteira (MG). Contudo, pescadores já relatam o aparecimento de pirarucus em afluentes do rio Grande, como o Turvo e o Marinheiro. “Somente neste ano eu peguei quatro pirarucus, o maior pesou 117 quilos”, conta Renato, pescador de Cardoso.
Lilian Casatti, professora e pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Unesp de Rio Preto é uma das pesquisadoras brasileiras que estuda sobre os impactos do pirarucu nos rios do interior de São Paulo. Ela conta que os primeiros registros de aparecimento da espécie na região são de 2010.
“Provavelmente se deu por conta do rompimento de tanques de criação. Os impactos ainda não foram documentados. A julgar por situações semelhantes, que ocorreram com outros peixes de grande porte que foram introduzidos em rios e lagos pelo mundo afora, sabemos que os impactos poderão ser devastadores sobre a fauna nativa”, afirmou a pesquisadora.
Oficialmente ainda não se sabe como o peixe da Amazônia chegou aos rios da região. Relatos apontam que em 2010, durante o período chuvoso, um açude com criação de filhotes de pirarucu se rompeu na região de Paulo de Faria. Os peixes foram parar no rio Grande e encontraram condições ideais para se reproduzir.
Levi Francisco do Santos, diretor do departamento de meio ambiente de Cardoso, diz que no decorrer dos últimos anos o tamanho dos peixes aumentou. “A gente tinha muitos pescadores encontrando pirarucus de 80 a 90 quilos, agora a média é de 110 a 120 quilos”.
Sem predadores, o peixe da Amazônia “deita e rola” no rio Grande e seus afluentes. Consequentemente, reduz a presença das espécies nativas que já sofrem com outros problemas ambientais, como poluição de rios, pesca predatória e o desaparecimento de matas ciliares.
Levantamento da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), aponta que as espécies exóticas são a segunda maior causa de perda de biodiversidade, atrás apenas da ação humana. Os invasores, como o pirarucu, são espécies que se encontradas fora do seu ambiente de distribuição natural ameaçam as espécies nativas e seus ecossistemas.
“Os impactos ambientais que o pirarucu pode causar ao ecossistema aquático são potencialmente muitos, uma vez que estamos falando de uma espécie predadora de topo de cadeia alimentar, e um animal de grande porte, que consome outras espécies animais como peixes de menor porte”, disse Lidiane Franceschini, pesquisadora colaboradora do Laboratório de Ecologia de Peixes da Unesp de Ilha Solteira.
Já o professor Igor Paiva Ramos ressalta que o peixe pode causar extinção local de espécies de peixes e invertebrados que são utilizados como alimento por meio da predação.
“São peixes que podem competir por recursos ambientais com outras espécies de peixes nativas, e também introduzir parasitas, que podem parasitar espécies de peixes nativas. Tudo isso pode causar impactos nas relações ecológicas entre as espécies, podendo causar desestruturação das comunidades aquáticas. Ainda, a depender das espécies predadas, podem causar diminuição de espécies importantes para pesca regional”, alertou o pesquisador do Laboratório de Ecologia de Peixes da Unesp de Ilha Solteira.
Pirarucu aquece turismo
Ao mesmo tempo em que o pirarucu é uma ameaça para espécies nativas dos rios da região de Rio Preto, ele também movimenta a economia de cidades banhadas pelo rio Grande. A expectativa de fisgar um peixe de 200 quilos nos rios paulistas está fazendo pescadores de outros estados virem pescar na região.
Segundo o diretor do departamento de meio ambiente de Cardoso, Levi Francisco do Santos, desde que a pesca de exemplares da espécie ficou comum no rio Grande, centenas de pescadores e turistas desembarcam em Cardoso. Por ser uma espécie invasora, a pesca é liberada para pescadores amadores e profissionais.
“Estamos estudando fazer um torneio de pesca do pirarucu para movimentar o turismo, mas também para diminuir a quantidade de exemplares no rio porque é uma espécie invasora”.
Pesquisadores ouvidos pelo Diário defendem que além da adoção de medidas de mitigação do problema, é importante ações de educação ambiental como forma de conscientizar a sociedade e políticos sobre os riscos e prejuízos ambientais e econômicos que a introdução de espécies não-nativas pode causar.
“O ideal seria evitar a criação de espécies não nativas, pois, uma hora ou outra, ocorre escape (seja acidental ou proposital). Também é preciso que aqueles que hoje criam esses animais tenham a responsabilidade de não soltá-los em rios e lagos. É preciso maior esclarecimento da população sobre essas consequências”, ressaltou Lilian Casatti, professora do Laboratório de Ictiologia da Unesp de Rio Preto. (RC)
Outras espécies invasoras
Além do pirarucu, nos últimos anos, aproximadamente outras 75 espécies de peixes não-nativos – espécies que não são originalmente de nossa região – foram introduzidas nos rios do Noroeste Paulista.
“Dentre essas, algumas são bastantes conhecidas e possuem importância para pesca esportiva e artesanal e como fonte proteína animal para a população humana. Podemos destacar as espécies de tucunarés (Cichla kelberi – tucunaré amarelo e Cichla piquiti – tucunaré azul), a corvina (Plagioscion squamosissimus), o porquinho (Geophagus sveni), a tilápia (Oreochromis niloticus) e mais recentemente o pirarucu (Arapaima gigas)”, ressaltou Lidiane Franceschini, pesquisadora da Unesp de Ilha Solteira.
Criação em cativeiro seguida por soltura nos rios da região e construção de usinas hidrelétricas estão na lista dos motivos para o aparecimento de espécies invasoras nos afluentes do Noroeste Paulista. É o caso, por exemplo, das arraias de água doce, das espécies do gênero Potamotrygon, que são comuns no rio Paraná da Argentina, mas que estão invadindo os afluentes do Tietê, após a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Jean Vitule, coordenador do Laboratório de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) conta que diversas espécies de peixes chegaram aos rios da região graças à construção da usina de Itaipu. “Várias espécies que existiam abaixo do Salto das Sete Quedas, com a construção da Usina Hidrelétrica, subiram. É caso das arraias, de algumas espécies de cascudos e até de piranhas. Isso gera um grande impacto ambiental”.
Isso porque, normalmente, as espécies não-nativas acostumadas a habitar lagoas e áreas de remansos em sua área de distribuição natural encontram condições favoráveis para reprodução na região. “Como praticamente todos os rios da região Sudeste de médio e grande porte foram represados, os reservatórios formados oferecem habitat adequado a essas espécies”, explicou o professor Igor Ramos, da Unesp de Ilha Solteira.
Isso associado ao fato de serem espécies com hábito alimentar carnívoro generalista ou onívoro, a falta de espécies nativas que possam dificultar a introdução por meio de predação e competição possibilita um bom aproveitamento dos recursos alimentares disponíveis. “Ou seja, elas possuem habitat adequado, alimento disponível, normalmente não possuem predadores naturais nos primeiros anos da introdução e o clima de nossa região favorece a reprodução dessas espécies e o sucesso da introdução”, completou Ramos.
Causas para o desaparecimento de espécies
Matas ciliares
Fornecem insetos, frutos e folhas para os peixes. Quando são destruídas, peixes e outros animais aquáticos perdem a fonte de alimento. Além disso, sem a sombra das árvores, aumenta a incidência dos raios solares na água, o que acelera a fotossíntese e causa o crescimento desordenado de algas que retiram o oxigênio dos peixes.
Poluição
A poluição provoca a morte de toneladas de peixes, devido, principalmente, à redução do oxigênio dissolvido na água. Essa perda de oxigênio ocorre pela entrada de poluentes procedentes, sobretudo, de esgotos domésticos e industriais, que trazem grande quantidade de matéria orgânica para os sistemas aquáticos, sendo que no processo de decomposição dessa matéria orgânica as bactérias utilizam oxigênio disponível na água.
Pesca predatória
Como o próprio diz, acontece através da captura de peixes muito jovens. Isso fragiliza a reposição de seres da região, pois eles são pescados antes de se reproduzirem, acarretando em uma queda de peixes da espécie.
Usinas hidrelétricas
As barragens têm vários efeitos sobre a vida dos peixes. O primeiro e mais direto é a interferência na sua migração e procriação. As barragens alteram o fluxo dos rios e criam enormes obstáculos (barreiras físicas) para o ciclo migratório (piracema) e até mesmo para a sobrevivência das espécies.
A escada para peixes tem sido usada como uma medida mitigadora, mas sua eficácia é questionada pelos especialistas, porque mesmo quando ajuda a manter a vida aquática, raramente consegue evitar que as espécies nativas não desapareçam.
Menos peixes nos rios da região
Pelos menos seis espécies de peixes estão ameaçadas de extinção nos rios da região de Rio Preto. É o que aponta um levantamento feito pelo Diário junto a pesquisadores que estudam a fauna aquática do noroeste do Estado de São Paulo.
Vítimas da pesca predatória, poluição, usinas hidrelétricas e destruição de matas ciliares, espécies como dourado, tabarana, pintado, jaú, lambari do rabo amarelo e piracanjuba desapareceram dos rios regionais nos últimos anos.
Além da extinção, pesquisas apontam para uma diminuição no total de espécies de rios e represas do Noroeste Paulista. Um estudo liderado pelos pesquisadores Fábio Campos, Bruno Ramires e Vanessa Andrade, realizado na Unesp de Rio Preto, mostra uma redução do número de espécies nativas na Represa Municipal.
O estudo aponta que de 29 espécies, em 2002, a Represa Municipal passou para apenas 24, em 2016. Também chama a atenção a diminuição da abundância (13.672 exemplares, em 2002, e 7.407 em 2016) e aumento do número de espécies não nativas (6 espécies em 2002 para 10 em 2016). “Além disso, constatamos que aproximadamente 75% de todos os peixes da Represa não são originários da fauna regional”, afirmou Lilian Casatti, pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Unesp de Rio Preto.
Ela ressalta que além da proliferação de espécies não nativas, a perda de florestas ciliares, assoreamento de represas, contaminação de rios por pesticidas e fertilizantes usados em excesso na agricultura e até lançamento de esgoto doméstico e industrial nos rios da região são os principais causadores dessa mudança no ecossistema aquático regional.
“As espécies nativas demonstram ser mais sensíveis a essas alterações e por isso estão em declínio. As espécies não nativas já são mais resistentes, não demonstram muitas exigências e conseguem aproveitar os poucos recursos que ainda existem. Na minha visão, a continuar esse cenário, em pouco tempo, nem elas resistirão”.