Mesmo com evidências científicas de que o chamado “tratamento precoce” (conjunto de remédios como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina) não funciona contra a Covid-19, uma quantidade expressiva de médicos segue prescrevendo os medicamentos a seus pacientes para prevenir ou tratar a doença.
E, com a cloroquina e a hidroxicloroquina como principais símbolos do “kit Covid”, citadas diversas vezes pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), as drogas azitromicina e ivermectina parecem estar assumindo um papel de destaque e sendo prescritas e utilizadas mesmo por quem já sabe que o tal “kit Covid” não tem eficácia comprovada.
Médicos relatam que o conjunto de remédios, quando usados em doses inadequadas e contínuas, ou por pessoas com algumas doenças prévias, pode causar efeitos graves como arritmia e hepatite medicamentosa (basicamente, lesões no fígado, órgão que metaboliza drogas).
Segundo um caso documentado pelo Hospital das Clínicas da Unicamp, uma pessoa saudável desenvolveu hepatite medicamentosa após contrair o coronavírus em dezembro e ser medicada com as drogas do “kit Covid”. O paciente entrará para a lista de transplante de fígado, segundo Ilka Boin, professora da Unicamp e diretora da unidade de transplante hepático da universidade.
Acreditava-se que a hepatite do paciente poderia ser um quadro pós-Covid, considerando que a doença afeta diversos órgãos. Biópsias feitas em janeiro e fevereiro, porém, confirmaram que as lesões estavam associadas a uma hepatite medicamentosa. O histórico clínico da pessoa apontava somente para o uso das drogas do kit, e assim foi feita a associação.
Além da pele e dos olhos amarelados, o paciente apresentou fadiga e coceira. Ele está em casa, com quadro estável, mas ainda sendo observado por especialistas.
A presença do paciente na lista de transplante não significa, necessariamente, que a operação será necessária. A inclusão, porém, facilita o processo em caso de piora do quadro.
Boin afirma que chegou a ver uma prescrição com 16 drogas, quase todas sem eficácia. “Tinha uma dipirona [analgésico e antipirético] pra tomar quatro vezes por dia”, diz, sobre a única medicação no receituário que fazia sentido. Na lista também havia dutasterida, uma droga contra aumento de próstata. Os possíveis efeitos colaterais do medicamento incluem impotência, diminuição da libido e ginecomastia (crescimento de mamas em homens).
Mas, se a cloroquina parece ter saído um pouco de cena (não para Bolsonaro, que insiste em falar da droga), o arsenal ineficaz só cresce, com, por exemplo, vitamina D e zinco.
Segundo Christian Morinaga, gerente-médico do pronto-atendimento do Hospital Sírio-Libanês, os pacientes continuam chegando à instituição em busca de atendimento após reação mais grave ao “kit Covid”.
Morinaga alerta que os pacientes têm tomado doses cavalares de vitamina D, o que pode elevar os níveis de cálcio no sangue e até causar danos renais.
“A suplementação de vitamina D vai ser importante para alguns pacientes, nas doses recomendadas. Muitos acham que quanto mais, melhor, mas não é bem assim”, afirma.
No caso da azitromicina, Morinaga diz que o remédio é indicado para pacientes que tenham alguma infecção bacteriana associada à Covid-19. Em outros casos, o uso é desencorajado, uma vez que antibióticos em excesso podem levar à resistência bacteriana.
A angústia por oferecer algum medicamento aos pacientes que chegam desesperados e a falta de embasamento científico estão entre as principais motivações para que os médicos continuem indicando esses remédios a seus pacientes, segundo especialistas.
Morinaga conta que pacientes que chegam com suspeita de Covid-19 ou com a doença confirmada muitas vezes pedem para receber os remédios do “tratamento precoce” e questionam os profissionais sobre a prescrição que recebem.
“Não é um trabalho fácil tratar a Covid-19. Existe uma grande ansiedade na população, muita falta de informação e notícias falsas. O trabalho de convencimento que o médico tem que fazer é muito difícil”, afirma Morinaga
Para o cardiologista Luís Correia, professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, onde dirige o Centro de Medicina Baseada em Evidência, falta racionalidade científica para os médicos que prescrevem essas drogas apesar de todos os estudos já publicados.
“Naturalmente, muitos médicos tendem a superestimar o que fazem e subestimam o dano que podem causar. Diante da pandemia, tentam ajudar, mas, se a racionalidade científica não está bem construída, acabam abrindo guarda para os vieses. Deixam o viés da crença prevalecer sobre o princípio científico do ceticismo”, afirma Correia.
Na segunda-feira (22), a EMA (agência europeia de medicamentos) publicou um comunicado afirmando que o uso da ivermectina para prevenção ou tratamento da Covid-19 não possui suporte fora de estudos clínicos bem planejados.
Segundo a agência, foram revisados os dados mais recentes de testes feitos com a ivermectina contra o coronavírus. Nenhum pedido para uso do remédio contra a Covid-19 foi feito na União Europeia, de acordo com a EMA.
“Estudos de laboratório mostraram que a ivermectina pode bloquear a replicação do Sars-CoV-2, mas em concentrações do remédio muito mais altas do que as doses atualmente autorizadas [para uso contra alguns tipos de parasitas]”, diz a agência.
A própria desenvolvedora da droga, a farmacêutica Merck (MSD, no Brasil), já afirmou publicamente que os estudos feitos não apontam eficácia da ivermectina contra a Covid.
A Associação Médica Brasileira pediu o banimento do chamado “kit Covid” na terça-feira (23). “Medicações como hidroxicloroquina e cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da Covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas da doença”, afirmou a organização em nota. “A utilização desses fármacos deve ser banida”.