Acidentes e mortes no trabalho são ocorrências complexas vinculadas à saúde do trabalhador e representam um dos maiores problemas de saúde pública em todo o mundo. No Brasil, apesar dos esforços de órgãos reguladores e empresas no sentido de ampliar a segurança no ambiente de labor, as “estatísticas são alarmantes e as consequências atingem empresas, funcionários e familiares, além de afetar […] toda a sociedade” (EYERKAUFE Ret al., 2019 p. 2).Os acidentes de trabalho, muitos deles evitáveis, comprometem a produtividade do trabalhador, afetam a economia das empresas e dos serviços públicos e impingem grande sofrimento nos trabalhadores acometidos e seus familiares (SILVA JÚNIOR, 2020).Esses acidentes equivalem a um terço dos atendimentos por causas externas realizados nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e geram custos nas portas de entrada de urgência, internações, reabilitações e medicamentos (BRASIL, 2014).
Na expectativa de reduzir a dimensão do problema, o Ministério da Saúde tem exercido papel importante, por meio da implantação de políticas públicas voltadas à atenção integral à saúde do trabalhador em todo o País, como um direito fundamental garantido pela Constituição Federal brasileira (BRASIL, 1988). Considerando a gravidade do quadro de saúde dos trabalhadores brasileiros aventada por indicadores de acidentes do trabalho e doenças relacionadas, um dos mecanismos criados foi a notificação compulsória de casos de acidentes de trabalho, instituída pela Portaria nº 777/2004 (BRASIL, 2004), que se tornou uma das mais importantes normas que de regulamentação e contribuiu para a elaboração de políticas públicas de saúde: todos os profissionais da saúde, pública ou privada, independentemente da área de atuação, devem observar essa normatização. Sá, Gomide e Sá (2017) veem a notificação como forma indispensável à apuração correta dos acidentes de trabalho, pois permite aos gestores conhecer os fatores e as situações de risco, intervir com medidas direcionais apropriadas e mitigar efeitos econômicos e psicossociais dos acidentes de trabalho.
A Lei 8.213, 24 de julho de 1991(BRASIL, 1991, art. 19) conceitua acidente de trabalho (AT) como evento “que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho […], provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”. Para ser bem caracterizado, um AT deve ocorrer quando o indivíduo está em exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico, produtor rural, arrendatário rural, pescador artesanal, no local e no tempo de trabalho, que cause lesão corporal, perda ou redução da capacidade ou ganho do trabalho, perturbação funcional ou morte.
Essa lei permite classificar um acidente de trabalho em três categorias: acidente típico (em geral súbito, violento, fortuito, com lesão corporal da vítima, de consequências geralmente imediatas, como cortes, choque elétrico, quedas e queimaduras); doenças ocupacionais e do trabalho, deflagradas em virtude da atividade laborativa desempenhada pelo indivíduo (como os da informática) e equiparam-se aos acidentes de trabalho pelo nexo causal ou vínculo fático, que liga efeito e causa; e acidentes por equiparação ou de trajeto, ocorridos no horário ou no ambiente de trabalho, mesmo fora dele, mas dele decorrentes, com o qual mantêm vínculo fático (BRASIL, 1991;SILVA JÚNIOR, 2021).É importante, também, diferenciar doença ocupacional ou profissional, desencadeada pelo exercício do trabalho e peculiar à execução rotineira de determinada atividade (como Lesão por Esforço Repetitivo e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho); e doença do trabalho, “desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente” (BRASIL, 1991, Art. 20), como a audição danificada em função dos ruídos no ambienta laboral.
Entre as causas principais que desencadeiam acidentes de trabalho, muitas evitáveis, estão: insegurança, precariedade das condições ambientais, sobrecarga e jornadas exaustivas,, cansaço excessivo por exigências (físicas, cognitivas e psíquicas) que superam a capacidade do trabalhador, quantidade e ritmo de produção, tempo insuficiente e trabalho sob pressão, eventuais mudanças na organização para atender o mercado, ampliação dos riscos ambientais e psicossociais do labor, cobranças irreais e metas inalcançáveis, clima ruim ealto índice de insatisfação profissional (NOGUEIRA et al., 2019).Gomes et al. (2021) destacam, também, o estresse ocupacional manifesto por um conjunto de perturbações psicológicas e sofrimento psíquico; vem expresso em sintomas físicos, cognitivos, emocionais e comportamentais; interfere no desempenho laboral e no estado de saúde do trabalhador; produz sentimentos de inutilidade, indignidade, desqualificação e incapacidade temporária.
Sá, Gomide e Sá (2017) correlacionam o acidente de trabalho a uma condição extremamente aflitiva, de graves consequências: o trabalhador atingido pode tornar-se inválido ou ir a óbito, repercutindo no próprio trabalhador, em sua família, na empresa e em toda a sociedade. Em casos fatais, os impactos sociais dos acidentes de trabalho alteram completamente a organização familiar: perde-se o provedor da família, gera dificuldades financeiras do grupo familiar e na educação dos filhos, produz desamparo social e dificuldades relativas às necessidades básicas.
Dependendo do acidente de trabalho, os custos são altos e penosos: cirurgias e remédios, uso de próteses e assistência médica especializada e psicológica, fisioterapia, isolamento social e dependência de terceiros para acompanhamento e locomoção, diminuição do poder aquisitivo, redução do amparo à família e risco possível de desemprego. No Brasil, valores substanciais dos custos com acidentes de trabalho recaem sobre a Previdência Social, por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Os custos de um acidente de trabalho, independentemente de sua gravidade, carreiam prejuízo financeiro à empresa ou organização (NOGUEIRA et al., 2019). As análises desses custos devem ter como foco três indicadores: custos econômicos diretos, como gastos com assistência, tratamento e reabilitação médica e ocupacional; custos indiretos, como perda de oportunidades devido ao acidente(para empregado), queda de produtividade (para empregado e empregador) e queda na qualidade da produção; e, o principal, o custo humano, como piora na qualidade de vida do trabalhador e sua família, dor e sofrimento, perda da vida pessoal e social, perda econômica significativa e danos psicossociais que, geralmente, permanecem ocultos nas análises e são de difícil identificação (SILVA JÚNIOR, 2020).Os acidentes de trabalho vêm associados a danos físicos funcionais do trabalhador ou morte, prejuízos materiais e econômicos e danos à imagem da empresa (NOGUEIRA et al., 2019).
São inúmeras as possíveis consequências dos acidentes de trabalho (ALVES; LIMA, 2018): físicas, dor e lesão incapacitante total ou parcial do trabalhador, temporária ou permanente; reflexos psicológicos negativos, que também atingem familiares (discriminação familiar e social, baixa autoestima) e toda a equipe; e reflexos econômicos pela redução salarial proveniente apenas da percepção de benefício previdenciário, possibilidade de desemprego e dificuldade de encontrar novo posto de trabalho devido às sequelas e diminuição da capacidade laborativa.
Para o trabalhador, os componentes de um AT geram efeitos nocivos sobre o bem-estar e o comportamento psíquico, tais como: afastamento temporário ou permanente do trabalho, distúrbios e danos psicológicos (dor, ansiedade, estresse e perda de prazer à vida), desequilíbrio emocional e financeiro seu e de sua família. Pode significar queda de produtividade quando, em casos menos graves, o trabalhador retorna às atividades produzindo menos (SILVA JÚNIOR, 2020) ou resulta em aposentadoria precoce por invalidez, aumento de despesas e desequilíbrio no orçamento doméstico. O empregado acidentado amarga os piores efeitos de um acidente no trabalho: é ele que sente as dores e as limitações decorrentes e se submete a tratamentos médicos por vezes demorados e desgastantes física e psicologicamente; ele é o penalizado e soma traumas físicos incapacitantes, limitações e perturbações psíquicas, que comprometem sua independência e autonomia. É ele que vivencia a culpa, a própria imagem e o esquema corporal alterados, o cotidiano de vida (hospitalização, imobilidade, isolamento, perda de funções cognitivas) e a dinâmica familiar comprometida (conflitos e problemas emocionais, desestabilização financeira), as rotinas médicas (exames, perícias, tratamentos das sequelas físicas e psicológicas, às vezes pouco visíveis e julgadas como simulação) e a aposentadoria por invalidez, que lhe rebaixa a renda e impacta sua identidade como traço de grande significação.
O trabalhador acidentado no trabalho tende a sofrer afastamento social, abandono, isolamento e marginalização, alterações comportamentais e psicológicas sérias (depressão, medo, raiva, irritabilidade, ansiedade, aumento da impulsividade, agressividade, comportamento suicida, quebra de vínculos afetivos e dificuldade de convívio social), com reflexos na família e grupos sociais que frequenta(SILVA JÚNIOR, 2020). Os acidentes e doenças do trabalho frustram a existência do trabalhador e estabelecem um “contínuo processo de desconstrução do indivíduo” na sociedade, retiram dele a “sociabilidade e a vontade de ‘estar no mundo’, provoca uma ressignificação do cotidiano, antes ativo e cheio de altos e baixos, para um viver desacelerado, entre tristezas e expectativas” (ARAÚJO, 2008, p. 57). Evocam distúrbios mentais e sequelas, decréscimo do potencial de trabalho, da autoestima, da qualidade de vida, problemas psicossociais (depressão, vergonha, estigmatização, isolamento, ideação suicida), desemprego, abuso de drogas (ARAÚJO, 2008), que alcançam a família e seu círculo social. Passa, ainda, por um processo doloroso de ter seu trauma e consequências ignorados, desvalorizados, relegados à invisibilidade.
Para a empresa, o acidente de trabalho implica custos diversos, tais como: prejuízos à sua imagem, custos adicionais de salário com empregado, consertos de máquinas e equipamento ou estruturas danificadas, paralisia de setor, interrupção da produção setorial, danificação de produtos e matérias-primas e insumos, atrasos no cumprimento de cronograma de produção e entrega, custos com assistência médica de urgência e cobertura de licenças médicas, gastos com a recuperação do colaborador, com contratação e treinamento de colaborador substituto, despesas eventuais com perícia trabalhista e civil ou criminal, ações judiciais e multas ou indenizações. Os Atos geram custos sempre crescentes para os serviços de saúde, quer nas portas de entrada de urgência, quer em internações, reabilitação, medicamentos, dentre outros (BRASIL, 2010). Além disso, acrescentam-se gastos com afastamentos e aposentadorias pagos pela Previdência Social e prejuízos às forças produtivas (SANTANA et al., 2006; BRASIL, 2014).
Araújo (2008) pondera que os impactos de um AT ultrapassam as fronteiras econômicas e de saúde e recaem sobre a vivência do trabalhador, em um profundo processo de descaracterização do indivíduo como pessoa, com perspectiva de melhora futura que nunca chega. Altera a vida da pessoa acometida ao produzir incapacidade, temporária ou permanente; rompe o cotidiano do trabalhador, que necessita reorganizar sua vida, adaptar-se às novas limitações impostas pelo problema físico; sofre os efeitos diretos na sua rede de relações sociais e impactos econômicos significativos em seu orçamento, redução da renda e desestruturação familiar (ARAÚJO, 2008). Para a sociedade significa redução da população economicamente ativa; para a assistência médica geralmente gratuita feita pelo SUS, um ônus com socorro e medicação de urgência e intervenções cirúrgicas, maior ocupação de leitos nos hospitais, custos com apoio prestado à família e com benefícios previdenciários, aumento da taxação securitária e de impostos e taxas.
Soares e Curi Filho (2015) defendem que o acidente de trabalho não é apenas fruto de erro humano, centrado nas demandas cognitivas, perceptuais e fisiológicas dos trabalhadores, mas um evento inserto no processo produtivo, cujas causas nem sempre são bem explicitadas e podem ter origem em inadequações do sistema, fadiga, estresse ocupacional, insuficiência de assistência técnica, problemas de concepção e de comunicação nas equipes, deficiências gerenciais, e mesmo excesso de confiança, entre outros. Partindo-se, portanto, do olhar de que o erro humano não é falta de atenção, de interesse, desmotivação e negligência do trabalhador, é possível pensar-se na prevenção de acidentes sem se buscar identificar o culpado (como na visão tradicional) para puni-lo. Para que medidas de prevenção de acidentes sejam efetivas, é necessário analisar o contexto de trabalho: identificar possíveis imperfeições do sistema de produção e possíveis causas diretas e indiretas do acidente, locais onde ocorre, incidência e frequência, de modo a permitir a elaboração de medidas corretivas e preventivas, prever gravidades e efeitos e identificar.
Sob esse olhar, o acidente é um evento peculiar do sistema homem/máquina, e o homem é o centro de um sistema mais complexo, não tratado de forma isolada ou produto de determinado fenômeno, mas resultante de interações de diferentes componentes de um processo produtivo. A maioria dos acidentes não é obra do acaso, mas são previsíveis e evitáveis (SANTANA et al., 2006). Ações e medidas de controle de riscos devem ser aplicadas para eliminá-los ou reduzi-los, e o conhecimento produzido a partir da análise do acidente amplia as possibilidades de prevenção, por identificar as falhas no sistema de segurança (BRASIL, 2010). Um bom programa de prevenção de riscos profissionais é fundamentado nas condições de segurança, higiene e saúde no trabalho e permite diminuir acidentes e aumentar a competitividade (sem os custos onerosos dos acidentes) pela produtividade.
Considera-se que o acidente de trabalho, para o trabalhador e sua família, seja uma tragédia; para o empregador, um componente econômico considerável, incluindo desgaste da imagem do empreendimento; para a sociedade, um custo altíssimo, distribuído por meio de impostos. Segundo Nogueira et al. (2019), essas considerações contribuem para desnudar os prejuízos decorrentes da falta de prevenção, comparar custos de acidentes com custos de prevenção e buscar suporte para implantação das medidas preventivas e controlar melhor os custos da empresa.
Medidas de prevenção aos acidentes de trabalho sempre são apontadas como o melhor caminho, porque reduzem o custo econômico e psicossocial (EYERKAUFER et al., 2019). Ações de programas de prevenção de riscos ocupacionais possibilitam promover um ambiente de trabalho saudável e mais seguro, e concorrem para a melhora na qualidade de vida do trabalhador e da empresa (SILVA JÚNIOR, 2020).Uma importante forma de prevenção é aprender sobre o que ocorre ou pode ocorrer em um sistema produção. Um instrumento para esta aprendizagem é a análise de acidente, que permite compreender os riscos, solucionar problemas e proteger pessoas (BRASIL, 2010). Outra forma de prevenção, e uma das mais importantes, é a conscientização dos colaboradores da empresa, a quem cabe usar os equipamentos de segurança, respeitar as normas e comunicar eventuais anormalidades que sugerem colocar em risco sua saúde e sua vida no desempenho de sua função. Todavia, a responsabilidade principal da prevenção é da alta direção, cuja função precípua é garantir segurança e prevenir possíveis acidentes de trabalho.
É fundamental, neste cenário, que os gestores das empresas estejam preparados e aptos para gerenciar os riscos ocupacionais e antever perigos à saúde do trabalhador (SÁ; GOMIDE; SÁ, 2017). Igualmente, é essencial que as empresas vejam seus colaboradores, não apenas como mera força produtiva, mas preocupadas com os impactos supervenientes de um acidente de trabalho, cujos custos financeiros e psicossociais são significativos para o trabalhador, sua família e a sociedade (EYERKAUFE Ret al., 2019). A contemporaneidade, de forma alentadora e ampla, começa a entender a relação entre acidented e trabalho, produtividade e segurança da saúde dos trabalhadores, considerando-os não como força produtiva apenas, mas sua condição humana com todas as suas ansiedades, conflitos e relações.
Diante de um acidente de trabalho, Araújo (2008) considera que o suporte psicossocial do trabalhador e de sua família seja essencial para criar estratégias de enfrentamento da doença, do gerenciamento de sua vida e do lar, constituindo um lócus acolhedor para a nova condição. Segundo Andrade, Yunes e Martins (2021), outro suporte de apoio se refere à espiritualidade e à constante busca de significados para os eventos da vida, que ajudam no convívio e na conformação da situação e a construir significados positivos para a existência por vir. As redes de apoio contribuem para minimizar os efeitos do evento, ativar processos de resiliência nas vítimas de acidentes de trabalho e suas famílias, e promove sentimentos de esperança e bem-estar no indivíduo e na família, no sentido de suportar sequelas físicas (como pernas e braços amputados) e psicológicas graves.
Nesta visão, o olhar do profissional psicólogo, ao abordar os transtornos mentais e comportamentais oriundos do acidente de trabalho, atua com destaque no tratamento de manifestações psíquicas como a depressão e os transtornos de ansiedade, o equilíbrio emocional oriundo dos afastamentos, o isolamento social e outras consequências psicossociais. Diante dos agravos multifatoriais dos acidentes laborais sobre a saúde do trabalhador (e família) e da incorporação da subjetividade humana ao trabalho, o psicólogo pode intervir na perspectiva do restabelecimento da saúde do trabalhador, na reorganização de sua vida e sua reinserção na cadeia produtiva, contribuindo para atenuar efeitos psicossociais e auxiliando no enfrentamento da nova condição de acidentado.
REFERÊNCIAS
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