sábado, 9 de novembro de 2024
Pesquisar
Close this search box.

O fantasma nosso de cada dia

Tarciso tinha dezenove anos. Apesar da pouca idade, já tinha vivido experiências suficientes para concordar com a frase do personagem Hamlet, dita na obra homônima de Shakespeare : “Há mais…

Tarciso tinha dezenove anos. Apesar da pouca idade, já tinha vivido experiências suficientes para concordar com a frase do personagem Hamlet, dita na obra homônima de Shakespeare : “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, do que foram sonhadas na sua filosofia”.

Vivia sozinho desde os dezoito anos. Morava em um sobrado de três cômodos erguidos sobre uma casa grande pertencente ao seu avô Clemente. A casa ficava em lote amplo, ladeada por duas outras casas, além de uma quarta, ao fundo, edificada à esquerda do terreno. A frente era toda murada. Havia um portão grande, centralizado na extensão do muro, para entrada de carros. Do lado esquerdo, um pequeno portão para o acesso das pessoas.

O jovem Tarciso estudava no período noturno, chegava a casa tarde da noite. Naquela noite, especificamente, chegou por volta das onze e meia. Era costume entrar pelo portão pequeno que conduzia depois de mais dois passos a uma escada de alvenaria que, por sua vez, levava até à porta principal do sobrado.

Todavia, como era de costume, antes de entrar ao sobrado, logo após abrir o portão, não subia a escada, seguia em frente por um corredor que terminava em três degraus, os quais davam acesso a um quintal enorme, todo cimentado, bem na entrada da alpendre casa do Seu Clemente, onde havia, além de uma mesa e cadeiras de madeira, uma pequena cozinha conjugada, com pia, um fogão de quatro bocas e, num dos canto, um pote antigo de barro, com uma tampa e sobre ela uma caneca, ambas de alumínio brilhante.

Ele gostava de tomar água fresca naquele pote antigo de seu avô. Como as noites eram sempre quentes na sua cidade, habituara-se a beber daquela água com temperatura agradável, que descia suave pela garganta, fazendo-o sempre pensar sobre como as coisas simples podem ser prazerosas.

O fato é que, naquela noite, ao andar pelo corredor e chegar até o quintal da casa de seu Clemente, deparou-se com uma cena inusitada. A noite era de lua nova, estava alta e brilhante no céu, como uma lâmpada a iluminar todo o recinto do quintal e, com menos intensidade, a parte interna da área da casa. Lá dentro, havia aquelas cadeiras de alpendre, de gente menos abastada financeiramente, com sua estrutura em ferro transpassada por fios de plástico coloridos. Umas eram verdes, outras vermelhas.

Foi naquele momento que Tarciso, no pé dos três degraus, olhou para dentro da área e percebeu o vulto repousando tranquilamente em uma das cadeiras.

Passou-lhe várias ideias pela cabeça. A primeira delas, subir os degraus de volta e sair correndo em disparada. Alastrou-lhe pelo corpo um frio, vindo desde o dedão do pé e até parar no último fio de cabelo, que parecia esticado no alto de sua cabeça. Juntou toda a coragem que tinha e olhou fixamente para a cadeira onde estava o vulto.

Ele continuava lá, imóvel. Tarciso levantou os braços e acenou, esperando, quem sabe, um aceno de volta. Nada. A sombra na cadeira estava inerte. Olhou para trás mirando por onde ia fugir, caso houvesse qualquer movimento daquele ser.

Deu mais um passo em direção à coisa e acenou novamente. Nada. Mais dois passos e acenou. Nada, ainda. Repetiu os gestos, enquanto fixava o olhar naquela sombra, tentando reconhecer qualquer traço de fisionomia, fosse ela conhecida ou não. Talvez o medo que lhe diminuísse a visão, pois a dois passos daquilo não conseguia ver nada além de um vulto. Foi quando, com o corpo todo gelado, chegou perto e colou-lhe a mão.

Ufa! Seu corpo todo relaxou. A visão recuperou-se repentinamente. Só assim pode ver claramente o que era aquela coisa estirada na cadeira de seu avô. Um tapete enorme enrolado, quase um metro e oitenta de altura. Provavelmente sua avó, fazendo a limpeza da casa, enrolou-o e colocou-o sobre a cadeira e esse acompanhou sua forma. Parecia realmente uma pessoa sentada na cadeira, ainda mais no escuro.

Tarciso pensou consigo mesmo: se não tivesse reunido toda coragem para enfrentar seu medo e fugido no instante em que viu aquele vulto, no dia seguinte, teria jurado que vira um fantasma e comprovado que eles existem.

Assim são criados os fantasmas em nossa vida. Medo todo mundo tem. Alguns conseguem enfrentar seus medos e transformar seus fantasmas em meros tapetes enrolados na cadeira. Outros vão jurar que fantasmas existem e jamais vão beber água fresca.

Notícias relacionadas