sexta-feira, 20 de setembro de 2024
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“Na dor, Deus”

Eis-me aqui, no meu quase solilóquio. Pois, alfim, o mundo do cronista se resume ao seu próprio umbigo. Para todos aqueles que nem perceberam, não verti linha na semana passada,…

Eis-me aqui, no meu quase solilóquio. Pois, alfim, o mundo do cronista se resume ao seu próprio umbigo. Para todos aqueles que nem perceberam, não verti linha na semana passada, como se esperava, e desde já vou-me explicando.

Na verdade, antes tenho que falar da dor. E para aqueles que já ensaiam dizer-me exagerado, um aviso: ninguém sabe da dor senão a de si mesmo.

Dor é aquilo que nos faz esquecer de tudo, menos dela mesma; aquilo que rebaixa drasticamente em nós qualquer nível de exigência em coisa que seja; que nos cega e nos diminui a quase nada além de uma massa angustiada e queixosa; é aquilo que põe tudo em perspectiva.
Já há alguns anos tenho uma relação um tanto tormentosa com as sempre ansiadas férias: nunca consigo fazer tudo o que precisava e não descanso o quanto queria. Desta vez, em julho passado, não foi diferente.
Com incessantes dores nas costas, no primeiro dia das férias lá estava eu no médico. E lá se foram as férias com a (falta de) saúde e a dor. Até hoje.

Feito o exame e diagnosticado com o que pode ser traduzido como “quase-hérnia”, já agendei o início do tratamento indicado. De brinde, fiquei sabendo pelo exame que tenho sete cálculos renais. Um para cada gol da Alemanha, todos me esperando, sorrindo e dizendo: “Imagina na hora que a gente resolver sair…”.
Com a dor nas costas sob algum controle, fui honrar alguns compromissos familiares e profissionais que havia tempos esperavam minhas férias. Viajei para São Paulo e Santos.

Por uma azarenta infelicidade, em Santos, após encontrar uma grande amiga escritora, atravessava eu, com minha Bella esposa, uma avenida para encontrar meus irmãos.

Foi então que a mão torta do destino vendou meus olhos naquele canteiro central da avenida e lançou contra mim um ciclista desgovernado, que só freou o que pôde após o grito de minha Bella. Quando o vi, já estava para acertar-me, não havendo tempo suficiente para qualquer golpe ninja que eu conhecesse. Não caí, mas o tranco da batida me desconjuntou, e a coluna, já delicada, zangou de vez. Era a confirmação de que minha quota de dor seria então servida. E foi.

Tomei os remédios de que dispunha, sem qualquer efeito. Lá pela meia-noite, não mais suportando a dor, fui levado por meu irmão e meu primo a algumas farmácias apenas para ouvir, em meu desespero, que não aplicavam injeção sem receita. Pedi para me levarem ao pronto-socorro municipal, a dor impondo-me caretas e contorções. Após infindáveis minutos de uma eternidade, veio a esperada injeção. Que pareceu nem fazer cócegas. Não me ocorreu mais nada senão voltar para casa. Abandonei na mente tomada pela dor os outros compromissos pendentes: nada mais importava. A angústia me tomou de assalto, pois meus irmãos, que me trariam de volta a São Paulo, precisavam do justo sono antes de qualquer coisa: eu teria uma noite inteira pela frente.

Sem posição que diminuísse a dor, rolava na cama, suando frio e em pranto silente, imerso naquela dor que não cedia, e as duas horas que consegui dormir foram concedidas pelo cansaço apenas, que se abateu sobre meu corpo: adormeci rogando a Deus uma pausa na dor.

Eu estava a muitos quilômetros e várias horas de casa: impossível não sucumbir ao desespero diante de uma constatação dessas. Queria apagar e só acordar em casa. Acordei às 4h30 e esperei até as 8h para acordar todo mundo. Chegando a São Paulo, minha Bella esposa me trouxe de volta a Fernandópolis, que alcançamos ao ocaso, sob chuva. Era sábado.
No domingo, fui atendido gentil e excepcionalmente por um amigo quiroprático, o que ajudou muito. Na semana que começava, afora os momentos das sessões de RPG e já inevitavelmente afastado do trabalho, fui obrigado ao acamamento, única posição a mitigar a dor: não suportava ficar em pé ou sentado por mais que cinco minutos. Somente próximo do fim de semana o tratamento e os remédios começaram a surtir efeito, lentamente, e a dor começou a ceder.

Minhas manhãs de repouso — então forçado — eram interrompidas pelo namoro ruidoso de um casal de pombos no meu telhado e, por mais que eu me esforçasse, buscando algo de Verdi, Beethoven ou Sibelius, remoíam na mente o tema do “Jornal Nacional”, a música de abertura da novela, “Lucy in the sky with diamonds” — que me assumiu um tom até sombrio —, e umas duas músicas da Roberta Miranda — não me perguntem por quê.

Hoje percebo que não cantei durante esse período, o que é — bastante — sintomático, exceção por “Pietà Signore”, uma prece em forma de música, bem baixinho, no banheiro, as águas me livrando do peso das dores.
Certas coisas nos vêm porque são devidas e, embora muitos não entendam, necessárias, e o que eu pedia era que a dor parasse, só depois pedia para ter forças para passar por aquilo, confesso. A dor mudas as nossas prioridades. Muito ocupei Deus com as minhas lamúrias. E Deus falou a mim pela voz da família e de amigos, que serenaram minha angústia e me devolveram um pouco de paz, fazendo-me ver dias melhores por entre a névoa turvadora da dor. Da mesma forma, e muito mais, a minha Bella, que, incansável, sempre cuidou de mim. E ainda cuida.

Em todo esse tempo, também tive adoráveis superdoses da minha inseparável Khera, meu grude, minha companheira de todas as horas: não deixou meu lado, aonde quer que ia na casa, lá estava ela do meu lado.
Obrigado aos amigos e familiares que manifestaram seu apoio e suas orações pela minha melhora. Sou-lhes imensamente grato, pois elas muito valeram, eu sei.
Quando doentes, somos — na maioria — imprestáveis, e eu, que quando sadio já não presto para muita coisa, doente sou um traste prostrado e inerte.

Na dor encontramos Deus, na súplica do alívio, no desespero das intermitências, não apenas na alegria das saciedades, quando ainda tantos se esquecem d`Ele. A dor, todas as nossas dores, também é uma lição, como um grito da vida para que seja ouvida.Espero ter aprendido com esta. O que aprendi? Não conto. Cada um aprende com a sua.

O.A.Secatto

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