O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) lançará, nos próximos dias, um novo pacote de medidas para reduzir a criminalidade e a sensação de insegurança no Estado.
O pacote inclui um decreto e a promessa de investimentos de R$ 158 milhões para a aquisição de dispositivos eletrônicos de monitoramento, focados no centro da capital e na Baixada Santista, em uma nova etapa do programa Muralha Paulista, vitrine da gestão na área.
Tarcísio tem falado sobre o programa desde o fim do ano passado, prometendo “investimentos pesados” no setor após admitir, no balanço do primeiro ano de gestão, que a segurança pública é a área do governo que mais tinha deixado a desejar.
Internamente, entre aliados do governador, há frustração porque o aumento do efetivo policial nas ruas e a redução de algumas estatísticas criminais não tiveram efeito nas pesquisas internas de opinião, que apontam a segurança como a principal preocupação do cidadão.
Na última segunda-feira (22/1), durante uma entrevista coletiva, Tarcísio chegou a afirmar, inclusive, que o programa poderia resultar na compra de mais câmeras corporais para a Polícia Militar – o governador foi eleito com a promessa de campanha de retirar os equipamentos, mas uma série de críticas o fizeram recuar após ser eleito, de forma que ele nem suspendeu o programa nem o ampliou.
Reeleição de Nunes
A ideia de focar as ações no centro da capital e no litoral têm também um contexto eleitoral. Tarcísio trabalha abertamente pela reeleição de Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo e ambos têm uma série de ações conjuntas na região, considerada insegura pelo eleitor.
Além disso, Tarcísio pretende neste ano capitanear um movimento para mudar no Congresso a Lei de Execução Penal para manter os presos mais tempo em regime fechado. Trata-se de um movimento que aliados veem como o primeiro passo da jornada do governador na disputa à Presidência – há o entendimento em seu grupo que a esquerda tem dificuldades em lidar com o tema.
Diante da expectativa, o Metrópoles esteve nesta semana na Secretaria Estadual da Segurança Pública para conhecer o novo programa, que foi apresentado pelo subsecretário de Acompanhamento de Projetos Estratégicos, Rafael Ramos.
Muralha Paulista
“Muralha Paulista” é como o governo vem chamando um projeto iniciado nas gestões passadas de interligação de sistemas de câmeras de prefeituras, de radares de trânsito e do Córtex – a base de dados criminais do governo federal feita a partir do CPF de cada cidadão, que contém informações financeiras e trabalhistas dos brasileiros.
Até a gestão passada, o programa era batizado como Detecta.
Segundo Ramos, o novo decreto do governo vai mirar a redução de 18 tipos de delito (a maioria variações do crime de roubo que não têm tipificação própria).
Por exemplo: o roubo de celular feito por uma pessoa de bicicleta passaria a ser um tipo; o roubo a passageiros em pontos de ônibus, outro; o assalto a motoristas dentro de carros parados no trânsito, mais um. O roubo a residências, também.
Operações segmentadas
Com essa separação, o governo espera implementar modelos de prevenção e investigação segmentados e reduzir os índices de ocorrência de cada um desses crimes.
As metas do programa consistem em reduzir o que a secretaria chama de “mobilidade criminal” – literalmente, impedir que aqueles que cometem esses crimes consigam se deslocar pela cidade sem controle do Estado. É exatamente nesse ponto em que estão as apostas tecnológicas.
Elas envolvem quatro grupos de investimentos: infraestrutura, que consiste em sistemas de processamento de imagens e armazenamento de dados em nuvem; sensores, que poderão ser câmeras, tornozeleiras eletrônicas ou outras formas de recepção de dados; integração entre os diversos sistemas que já existem (como radares de trânsito e câmeras da Prefeitura), e os sistemas de emissão de alertas para as forças de segurança.
O sistema de alerta é um dos pontos cruciais do programa, segundo o governo. Em tese, ele permitiria que os analistas das forças de segurança do Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) da polícia fossem informados pelo sistema, em tempo real, caso, por exemplo, um conhecido ladrão de celular adotasse procedimentos que pudessem indicar que ele está prestes a cometer novos roubos.
“Essa é a parte que ninguém vende”, explicou Ramos, referindo-se aos grandes fornecedores de sistemas de segurança do mundo, que têm optado por oferecer a estrutura de forma completa, sem transferência de tecnologia. A proposta da gestão Tarcísio é que o próprio Estado desenvolva essa etapa do sistema.
O projeto foi desenhado após visitas feitas por técnicos da secretaria a locais como Israel, Estônia e China. O valor de investimento prometido para o programa, R$ 158 milhões, vem de uma articulação feita pelo governo com a bancada paulista no Congresso, por meio de emendas parlamentares.
“Rebranding” de sistemas
O pesquisador Alcides Peron, doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca que o Muralha Paulista, até aqui, se apresentou como um “rebranding” do Detecta, com funcionalidades parecidas.
Uma diferença, contudo, é a escala. O Detecta nasceu a partir da integração de câmeras rodoviárias e, agora, o Muralha Paulista tem convênio assinado com 642 dos 645 municípios do Estado.
O pesquisador, que trabalha no Núcleo de Estudos da Violência da USP, concorda que há possibilidade de sucesso na adoção dessas tecnologias para a redução dos crimes, mas pondera que há poucas evidências de que esse potencial vem se concretizando.
“Imagine um roubo de carga, por exemplo, em que você consegue acessar pelo sistema e saber por onde o caminhão passou”, afirma. “É bastante interessante a gente notar que o sistema tem uma efetividade. No entanto, nenhum estudo foi feito para mensurar a real efetividade em termos de prevenção de crimes e resolução de investigações”, diz o pesquisador.
Vigilância permanente
Outro ponto levantado por Peron é a falta de controle externo sobre o que agentes das forças de segurança podem fazer com um volume tão grande de informações reunidas sobre cada indivíduo e a possibilidade de seu rastreamento.
“De uma certa forma, [a conectividade de sistemas] pode potencializar o processo de investigação. Mas gera certo temor, uma vez que essa base de dados pode ser utilizada, se conectada com um sistema de câmeras como Muralha e outros, para perseguir indivíduos de múltiplas ordens”, afirma.
O possível uso de tecnologias de vigilância da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) contra adversários políticos do governo Jair Bolsonaro (PL) foi o centro das suspeitas que levaram a Polícia Federal, na semana passada, a realizar uma operação contra o ex-diretor-geral da agência, Alexandre Ramagem.
“Tornar-se dependente de uma tecnologia acreditando que ela pode ser utilizada para o bem nacional, para prevenção, por exemplo, de atentados, abriu um flanco enorme para a sociedade. Permite que um governo tenha um potencial de investigação sobre ativistas, opositores, desafetos e tantos outros agentes na sociedade. Tudo isso é bastante complicado”, afirma Peron.
Novas tecnologias
Os sistemas de vigilância em funcionamento e em implementação – em São Paulo e no restante do país – são montadas a partir da importação de tecnologias de empresas multinacionais. Peron ressalta que, ao adquirir essas tecnologias, a polícia acaba por importar também modelos de policiamento vindos do exterior.
“Não é incomum a gente ver forças policiais de alguns estados da União tomando consultoria com empresas transnacionais de segurança para resolver problemas que são muito particulares, que são muito característicos de uma realidade nacional”, diz Peron.
“Muitas vezes, isso pode acabar engessando os modos de ação policial para resolver esse tipo de problema”, afirma, acrescentando que a prática inibe a possibilidade de que o país desenvolva soluções para a violência a partir da própria realidade brasileira.
Quando conversou com o Metrópoles, o subsecretário Ramos afirmou que o governo paulista tem ciência que a realidade brasileira – e até a latino-americana – é diferente da dos países criadores dessas tecnologias. Este seria também um dos motivos para desenvolver um sistema de alertas próprio.
Para finalizar, Peron pontua que o tema possa ter “padecido diante de um ‘solucionismo sociotécnico”. Esse conceito acadêmico, segundo ele, critica a ideia de que problemas complexos da sociedade possam ser resolvidos apenas com a adoção de novas tecnologias.
O conceito alerta, ainda, para os potenciais direcionamentos para onde essas tecnologias nos levam, como uma supervigilância sobre a população negra.
“A segurança pública brasileira não abre espaço para pesquisadores independentes tentarem compreender os riscos associados a essas tecnologias”, diz Peron. “E não há uma percepção governamental, seja em âmbito estatal, federal ou municipal, sobre os riscos associados a essas tecnologias.”