Sem pressa, Ederly Vieira acompanha o conserto de seu carro em uma vidraçaria automotiva. No Volkswagen Parati em manutenção, cães descansam enquanto observam a movimentação dos funcionários. Um latido rompe o silêncio quando a tutora se manifesta. “É que eles escutaram a minha voz”, diz a mulher que, depois de ter perdido a casa, mora com seus 16 cachorros no veículo há mais de uma década em Limeira (SP).
“Minha família são os meus cães, as pessoas que gostam de mim e, assim como eu, querem ajudar os animais”, declarou Ederly.
“Crianças”, “filhos”, “família”. É assim que ela se refere aos cães de estimação. Ederly procurou a oficina porque, segundo ela, o carro teve o vidro da frente quebrado por pessoas desconhecidas.
Para se manter, ela vende bichinhos de pelúcia em diferentes pontos da cidade e também à beira de estradas da região de Limeira.
Sem romantizar a situação, Ederly pede ajuda a quem possa colaborar. Sabe que precisa de um lar de verdade e sonha ter uma chácara para morar, acomodar seus animais e cuidar de outros animais que possam precisar.
Com fala eloquente e vocabulário culto, Ederly demonstra ter experiência de vida internacional, mas evita falar de diplomas, títulos e das profissões que já exerceu pelo mundo. Duas delas, porém, fez questão de mencionar. “Sei cuidar de pessoas, fui enfermeira e até motorista”, disse.
E, para não restar dúvidas, esclareceu:
“Eu não sou uma moradora de rua, uma mendiga. Sou uma sobrevivente que mora dentro de um carro para não abandonar meus animais”, afirmou.
Com os cães, que chama pelo nome um a um, ela conversa em filipino e, em outros momentos, canta em castelhano. “Eu também já gravei um CD, querem ouvir?”, sugeriu.
Esse carro não é primeira morada itinerante de Ederly. Durante 14 anos, ela viveu em um Chevrolet Chevette com seus animais.
A Parati foi dada a ela de presente por uma mulher que a conheceu, se comoveu com a história, o modo de vida e resolveu ajudar. Com isso, Ederly colocou seu velho companheiro e antigo lar à venda.
Viver em situação vulnerável
A maior parte da “renda” que Ederly consegue em um mês é destinada à alimentação e cuidados com os cães, não como o próprio sustento.
Quando ficam doentes, os animais são levados ao veterinário. Ederly enfatiza que tudo é feito para dar uma vida melhor aos “filhos” caninos.
Por ser uma situação diferente do comum, a história da mulher que vive em um carro chama atenção dos moradores da cidade. Ela acabou ficando conhecida em Limeira e se tornou uma espécie de personalidade na cidade.
As possibilidades das pessoas se solidarizarem com a história e procurarem ajudá-la são parte dos aspectos positivos da repercussão dos vídeos nas redes sociais.
A condição de Ederly a fez conhecida na cidade. Da mesma forma, pondera Ederly, a expôs às más intenções, críticas e julgamentos gratuitos, que também a atingem com a “fama”.
Apesar de não ter morada fixa na cidade, Ederly não se considera uma pessoa em situação de rua, mas conta das dificuldades de não ter uma casa e dos riscos que sofre por viver em um carro.
Perseguição, tentativa de envenenamento e agressão contra os cães. Esses foram alguns casos de violência sofridos por Ederly e os animais de estimação, segundo relato da tutora ao g1.
Ter o vidro do carro quebrado e a lataria arranhada é só algumas das experiências desagradáveis das quais ela não gostaria de viver de novo. “Mas, já passou”, confortou-se.
Quem é Ederly?
Ederly não revelou a idade, assim como demais detalhes de uma época anterior à situação em que vive nos últimos 15 anos. A mulher também não fala sobre parentes. O passado, para ela, não é relevante e não faz mais parte de quem é no presente.
“Eu quero que as pessoas gostem de mim pelo que eu sou, não pelo que eu fiz ou pelo que sei fazer. A Ederly do passado não existe mais, eu sou o que sou agora, hoje”, disse.
Guiada pela fé, os ideais de Ederly se pautam no altruísmo, na solidariedade e no amor. “Tenho minha crença e sigo firme na palavra de Deus”, disse.
Sem esperar receber nada em troca, Ederly disse estar sempre disposta a doar para quem quer que precise. E, pretende viver assim até o fim, com alegria e leveza.
Espírito livre
Ederly conta também que, de certa maneira, sempre teve uma vida itinerante, em movimento. Ela se considera um “espírito livre” – como costuma dizer -, mais do que uma pessoa em uma situação difícil.
Nos momentos em que as coisas “esquentam”, Ederly afirma não ter o costume de ofender qualquer pessoa. Ela pede desculpas se já causou algum tipo de conflito e diz se arrepender.
“Eu peço realmente desculpas, não é da minha natureza. Mas, às vezes, passando por tantas dificuldades, acabamos endurecendo e tendo que nos defender. Tudo que eu faço é para sobreviver, poder cuidar e defender minhas crianças”, declarou.
Usando as ferramentas disponíveis
Antenada, Ederly tem um celular que ganhou de um médico que tratou dela no último ano. Nos perfis pessoais nas principais redes sociais, compartilha fotos e vídeos do seu dia a dia, de situações vividas e que acha importante registrar.
“Porque eu vivo nessa situação, muitos pensam que eu sou desinformada, ou burra, que não posso ter opinião própria ou um celular”, argumentou.
Com mais frequência, ela compartilha vídeos na sua conta do Tik Tok. Em alguns, registra momentos de seus cães ou ainda situações de perigo e vulnerabilidade. Em outras postagens, há registros de desabafos.
A intenção com a conta, segundo Ederly, é poder tocar as pessoas com sua história e conseguir ajuda de quem se solidarizar.
Os sonhos não envelhecem
Como diz o trecho da conhecida canção “os sonhos não envelhecem”, ela espera na luta, não conta os dias, mas enfrenta os desafios da vida que leva.
Com brilho no olhar e esperança no tom de voz, Ederly repetidamente diz do desejo de ter uma chácara para cuidar de seus cães, e dos próximos que virão. A mulher que, naquele dia, disse não ter se alimentado, promete cuidar daqueles que precisarem, não só dos animais, das pessoas também.
Para Ederly, a chácara não precisa de uma grande casa ou nenhum luxo, basta ter espaço para os cachorros viverem bem, para que ela possa dormir e amparar as pessoas.
Navegando pelo Tik Tok, Ederly encontrou uma “casa contêiner” e se encantou pela ideia. Ela espera que um dia possa ter uma dessas em sua sonhada chácara.
“Eu quero poder ajudar qualquer um, seja cachorro, qualquer animal, ou pessoa. Quero poder fazer o bem a quem me pedir, sempre”, ressaltou.
Além de conseguir local adequado para abrigar os animais, ela também fala com muito pesar sobre como espera um dia também poder cuidar de sua única filha. Ederly, por sua condição, não consegue ajudar.
“Hoje, ela tem 42 e, atualmente, enfrenta problemas de saúde e com dependência de álcool e não tem amparo”, contou. “Meu sonho é poder conseguir um tratamento para minha única filha. Eu tenho fé que um dia isso será possível”, disse.
E o futuro?
Para um futuro não tão distante, Ederly tem planos que, mais uma vez, casam com sua paixão pela vida livre e itinerante. Enquanto não realiza o sonho de ter a chácara para abrigar os cães, ela pensa em colocar o pé na estrada.
Com o dinheiro arrecadado na venda do seu antigo Chevette, ela fez os reparos necessários que a atual Parati precisava para poder viver realmente dirigindo.
“Eu não quero mais morar em nenhuma cidade, eu já sofri muito. Não quero mais ficar em um mesmo lugar, com as pessoas podendo me achar. Já que é pra viver em um carro, vou viver na estrada”, finalizou.