O grande número de corpos sepultados como indigentes ou “não reclamados” após necrópsia no SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos do Município da Capital), entre 1999 e 2013, provocou estranheza no Ministério Público de São Paulo e levantou a suspeita de que pode haver um esquema para aumentar o número de corpos usados em pesquisa no Estado de São Paulo.
A coordenadora do Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), Eliana Vendramini, explica que a Promotoria passou a suspeitar de que havia intencional omissão por parte do serviço gerido pela Universidade de São Paulo ao não localizar os familiares dos mortos.
— Isso, sem dúvida, abriu o alerta para que nós pensássemos: “Se, ao aumentar a demanda de indigentes e não reclamados, que não são nem sinônimos, há mais corpos autorizados a serem usados literalmente como coisa pública”.
Além disso, foram verificadas falhas no controle de órgãos e de corpos periciados pelo serviço. O R7 teve acesso a um laudo elaborado pelo MP a partir de documentos solicitados ao SVOC que indica, entre outras coisas, que “o arquivo eletrônico contém informações diversas que não correspondem aos órgãos ou tecidos descritos em numerosos termos de responsabilidade, assinados pelos prepostos das instituições de ensino que receberam tais peças […] Além disso, diversas descrições de peças no arquivo eletrônico são incorretas, como, por exemplo, “útero de cadáver masculino”.
Enquadrar cadáveres recém-periciados como não reclamados ou indigentes gera autorização legal para o uso deles com a finalidade de pesquisa, segundo Eliana. No entanto, a Constituição Federal e o Código Civil determinam que se deve tentar contatar a família, proprietária do corpo, para somente depois sepultá-lo ou utilizá-lo em estudo.
— Comecei a perceber que a desídia [desleixo] era interessante para a demanda de corpos.
Revelações
Ainda conforme o laudo elaborado pelo MP, em 166 casos, foram encaminhadas “peças do mesmo cadáver para instituições de ensino diferentes, em afronta ao determinado no Provimento da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo número 16/97”.
O documento aponta também que “não há documentação disponível nas respostas fornecidas pelo SVOC-USP do total de cadáveres encaminhados às instituições de ensino e de pesquisa com respectivas informações que permitam sua rastreabilidade. Não há documentos comprovando as solicitações de cadáveres por parte das instituições de ensino ao SVOC-USP, assim como não há nada que demonstre como é feito o encaminhamento de cadáveres, se segue um rodízio entre as instituições conforme determinada ordem, ou se ocorre por decisão do diretor do SVOC-USP e sobre quais critérios”.
Já em relação às manipulações de dissecções feitas pelas instituições de ensino nas peças cirúrgicas, o MP enfatiza que “praticamente não há documentação sobre tais procedimentos. A devolução de peças não está documentada na resposta dada pelo SVOC-USP, deixando obscuro se realmente são devolvidas” ao serviço para o sepultamento, se são mantidas pelas instituições ou se são descartadas.
No entendimento da promotoria, houve “evidente desinteresse pelo SVOC-USP em buscar contato com os familiares de cadáveres não reclamados, apesar de todos estarem identificados”. Foi observado também, de acordo com o documento, um esforço da instituição ao longo dos últimos anos em viabilizar a utilização de cadáveres “através de um contorcionismo técnico interpretativo da legislação vigente”.
Ofícios
Como o Plid não tem função de investigação, a promotora oficiou o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) para apurar a suspeita apresentada por alguns familiares de um possível tráfico de órgãos para pesquisa.
A promotora já começou a encaminhar ofícios para todas as instituições de ensino que receberam corpos e órgão do SVOC. Eliana está solicitando ainda que elas informem todo documento que possuem referentes ao assunto.
— Já que não fizemos a seu tempo uma busca e apreensão, estamos pedindo para todo mundo que recebeu (corpo ou órgão, segundo a listagem fornecida pelo SVOC), dizer se cumpriram a lei. Quero ver quem cumpriu, porque eles dizem que delegam o cumprimento à instituição para onde o corpo foi doado.
A representante do Ministério Público afirma que não é o momento de revelar os nomes das instituições envolvidas, limitando-se a informar que são “inúmeras em São Paulo”.
— É muito bom que a pesquisa possa se nutrir de material humano, desde que ele seja doado, desde que a família saiba de tudo o que está acontecendo.
Sindicância
No dia 16 de junho, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) abriu sindicância para apurar a suposta ligação de profissionais do SVOC com o tráfico de órgãos para estudo.
O Conselho pediu informações sobre a suspeita ao Ministério Público, que enviou ofício e partes do laudo elaborado pela promotoria.
Segundo a assessoria de imprensa do Cremesp, a sindicância está em andamento e a apuração é realizada em sigilo. Não há previsão de quando o procedimento será finalizado.