Mais de meio milhão de pessoas que receberam a primeira dose da Coronavac no início da vacinação no Brasil não retornaram para receber a segunda dose do imunizante, o que, de acordo com cientistas, pode comprometer a proteção da vacina.
Os dados tabulados pela Folha revelam um abandono vacinal de 14,13% no caso da Coronavac. Abandono vacinal é o nome técnico para o percentual de vacinados que iniciam o esquema vacinal e não o finalizam por diferentes motivos.
O levantamento olhou apenas para a Coronavac porque o intervalo entre doses do imunizante de Oxford/Astrazeneca é de 90 dias —as taxas de abandono dessa vacina, portanto, só podem ser calculadas a partir do final deste mês.
A Coronavac é a principal vacina contra Covid-19 aplicada no país. No primeiro mês de aplicação dos imunizantes, 7 em cada 10 vacinados receberam a vacina produzida pelo Instituto Butantan.
Em Roraima e no Amazonas, a quantidade de pessoas que tomaram apenas a primeira dose da Coronavac e não voltaram para receber a segunda passa de 25%. As menores taxas de abandono da vacina estão em Alagoas e no Rio Grande do Norte, ambos abaixo de 7% (veja infográfico). Os números foram extraídos do DataSUS, sistema de informações do Ministério da Saúde.
No primeiro mês de vacinação no país —de 17 de janeiro a 17 de fevereiro—, 4 milhões de brasileiros receberam a primeira dose da Coronavac. São pessoas de grupos prioritários como povos indígenas e quilombolas, trabalhadores da saúde, idosos e outros perfis definidos no Plano Nacional de Vacinação da Covid-19, com adaptações de estados e municípios.
A segunda dose teria de ser ministrada até 28 dias após a primeira. A autorização emergencial da Anvisa para Coronovac define a aplicação da segunda dose em um intervalo de 14 a 28 dias após a primeira etapa da imunização.
Até a última quinta (8), ou seja, mais de 45 dias após o primeiro mês de vacinação no Brasil, 562,2 mil desses vacinados não haviam retornado para receber a segunda dose da Coronavac.
A Folha conversou com cientistas e com o Instituto Butantan para entender os possíveis impactos na imunização de quem só tenha tomado a primeira dose da vacina. A resposta comum é que não há, ainda, nenhum estudo científico publicado que analise a proteção com uma dose única da Coronavac.
O que se sabe hoje é que o organismo leva uma média de duas semanas após a segunda dose das vacinas para construir seu escudo protetor contra a Covid-19.
Algumas pesquisas já sinalizaram proteção contra a doença após a primeira dose de outros imunizantes.
No caso da Oxford/Astrazeneca, a proteção contra o vírus começa em torno de 21 dias depois da primeira dose (a segunda aplicação tem um papel de prolongar a proteção adquirida).
Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, que produz a Coronavac, tem insistido em entrevistas para a imprensa que é melhor receber a segunda dose com algum atraso de até duas semanas do que não recebê-la. Ou seja: quem passou dos 28 dias após a primeira parte da vacina ainda deve requerer a dose faltante.
Segundo o virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, atrasar uma ou duas semanas na aplicação da segunda dose não deve ter um efeito importante. “Acima disso é preciso ter estudo”, diz.
“Na prática, não sabemos até quando dá pra esperar para tomar a segunda dose da Coronavac”, diz a microbiologista e pesquisadora da USP Natália Pasternak.
O rastreamento dos vacinados no Brasil pode ser feito no DataSUS porque cada pessoa imunizada é registrada no sistema com um código de identificação, no qual há informações sobre idade, dose da vacina recebida e a qual grupo prioritário pertence. Não há, claro, informações pessoais sobre cada vacinado que permitam identificá-lo.
Os dados mostram que 7 em cada 10 vacinados que abandonaram a trajetória vacinal têm menos de 60 anos –são, sobretudo, profissionais de saúde (especialmente técnicos e profissionais de enfermagem) e indígenas.
Depois desse grupo, quem mais não recebeu a segunda dose da vacina foram os idosos com mais de 80 anos: eles são 2 em cada 10 vacinados que não tomaram a segunda dose. Já a população entre 60 e 80 anos teve a maior adesão.
“Nenhum percentual de abandono é OK. Temos que tentar chegar muito perto do 0 ou, no máximo, 1%”, diz Pedro Hallal, epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do estudo Epicovid-19.
O abandono vacinal era uma preocupação de especialistas no país antes mesmo da pandemia.
Reportagem da Folha já havia mostrado que a taxa de vacinados que desistiram no percurso cresceu 47,6% nos últimos cinco anos. Passou de 15,8% em 2015 para 23,4% no ano passado.
Essas taxas eram calculadas no Brasil para nove vacinas, como a meningocócica C (com duas doses) e a poliomielite (com três doses).
Questionado sobre a sobre as taxas de abandono vacinal contra Covid-19, o Ministério da Saúde afirmou em nota que a estratégia de imunização da Coronavac foi definida entre União, estados e municípios para acelerar e ampliar a vacinação no país.
“A pasta esclarece que, semanalmente, coordena reuniões com as gestões de saúde estaduais e municipais para definir a orientação adotada a cada nova distribuição, para o cumprimento da imunização completa, com primeira e segunda dose. O ministério informa, ainda, que depende do registro das aplicações das vacinas pelos estados para divulgação das doses utilizadas nos grupos prioritários e para um acompanhamento mais efetivo da campanha de vacinação.”
Nos EUA, de acordo com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), 88% dos americanos que tomaram a primeira dose receberam também a segunda dose no intervalo adequado de tempo.
Dentro desses 12% faltantes, no entanto, somente 3,4% das pessoas perderam a segunda dose no prazo indicado. No momento da análise, 8,6% ainda não tinham tomado a segunda dose mas estavam dentro do intervalo adequado para tal.
Ao todo, 12,4 milhões receberam a primeira dose das vacinas da Moderna ou da Pfizer/BioNTech entre dezembro e meados de fevereiro.
Os autores das análises afirmam que a situação aparentemente positiva deve ser vista com cautela, porque conforme crescem os grupos prioritários a aderência ao intervalo recomendado entre as doses pode diminuir.