O sofredor psíquico, ao longo da história humana, sempre foi estigmatizado e segregado na sociedade e, quando conduzido a instituições psiquiátricas, recebia tratamentos tidos como desumanos. Na Idade Média, por exemplo, a loucura era socialmente vista como problema espiritual que demandava rituais religiosos para a purificação da alma. Os indivíduos considerados loucos eram abandonados em asilos para isolá-los do convívio em sociedade, viviam acorrentados em ambientes exíguos, sujos, úmidos, insalubres, tétricos e dispunham de pouca luz e água, vestidos ou embrulhados por trapos ou simplesmente nus (CARDOSO et al., 2013).
No Brasil, até pouco tempo, não tem sido muito diferente: o indivíduo com distúrbios psíquicos era privado de tratamento adequado e considerado indigno de convivência com seus pares humanos, sendo raro encontrar algum “louco” submetido a tratamento específico. Até 1830, aos loucos era permitida a circulação pela cidade, podiam ser “encontrados pelas ruas, casas de correções, asilos de mendigos, ou ainda nos porões das Santas Casas da Misericórdia” (LIMA, 2008, p. 2). Andrade (2018) lembra que doentes mentais de todo o país eram enviados para o Rio na esperança de que fossem recolhidos. Como depõe Andrade (2018, p. 90), no início da década de 1830, era quase impossível andar pelas ruas do Rio de Janeiro sem se deparar com alienados vagando por becos e vielas. Em geral, eram “recolhidos às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia ou à cadeia pública, de onde não saíam senão mortos. Viviam encarcerados em cubículos fétidos e estreitos, muitos passavam os dias acorrentados”. Quando tutelados por instituições religiosas, não raro “sofriam sanções físicas punitivas. O estado de abandono dos doentes mentais chamou a atenção de alguns membros da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicinado Rio de Janeiro, que se engajaram em campanhas pela criação de um estabelecimento para o tratamento dos alienados”. O argumento era que a Santa Casa não estava organizada e preparada para receber nem para promover a cura desses indivíduos, e seu apelo foi acatado pelo Império que construiu o Hospício de Alienados Pedro II, primeiro asilo brasileiro para doentes mentais.
O primeiro espaço de acolhimento aos “loucos” foi a Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, por volta dos anos 1830. Caracterizada como local de caridade e não de tratamento, os “loucos” ficavam “amontoados em porões, sofrendo repressões físicas quando agitados e não havia assistência médica” (CARDOSO et al., 2013, p. 112).Pelo seu atendimento como instituição de caridade, a Santa Casa desfrutava de grande prestígio social, poder econômico e político, e concentrava todas as obras de assistência, como atendimento hospitalar aos presos pobres, coleta de doações de esmolas, concessão de dotes às órfãs pobres, criação de crianças abandonadas, serviços funerários e execução de testamentos (LIMA, 2008).
Em 1830, uma comissão da recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro produziu um diagnóstico da situação da loucura na cidade e reivindicou para si o domínio da loucura (FERRAZZA; ROCHA, 2015). O hospício, como principal instrumento terapêutico da psiquiatria emergente, passou a ser o espaço institucional de controle do louco e se legitimou no discurso médico-psiquiátrico dessa contingência humana. A crítica dos médicos referia que os loucos ou “vagavam pelas ruas, ou ficavam isolados nas suas casas, ou eram encontrados em “cárceres” do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, que não oferecia condições para abrigá-los medicamente e recuperá-los” (LIMA, 2008). Os médicos criticavam a situação dos loucos nas ruas e seu isolamento no Hospital da Santa Casa e, assim, lançaram “uma nova palavra de ordem: aos loucos o hospício” (MACHADO, 1978, p. 376), ou, segundo Gandelman (2001, p. 618), “aos loucos a companhia dos loucos”.
Até a década de 1980, as redes assistenciais no Brasil eram sustentadas por recursos provenientes da Previdência Social e seguiam modelos terapêuticos precários, com uso abusivo de psicofármacos e isolamento dos doentes mentais adstritos aos manicômios. As internações se processavam de forma automática e arbitrária, como sequestro real, que privava o paciente de liberdade e o mantinha em uma espécie de cativeiro. Como consequências, registravam-se superlotação, erros médicos, índices elevados de mortalidade e segregação dos doentes mentais (GOULART, 2006; FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
Na concepção social, o sofrimento psíquico dos assim denominados “loucos” exibe um conceito de incapacidade, improdutividade e, por vezes, violência, causando vergonha em familiares e pessoas relacionadas ao sujeito que sofre. A partir desse sofrimento, aflora o preconceito na sociedade e nas próprias instituições que recebem esses “loucos” (manicômios, hospitais psiquiátricos e, principalmente, hospitais gerais). Constroem-se narrativas e representações sociais que contaminam as relações estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos e as comunicações. O paciente é estigmatizado, porque é um “perturbado” mental que “perdeu o juízo”, uma adjetivação melancólica que o marca de forma profundamente negativa (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
Na atualidade, a sociedade ainda carrega esse preconceito e, mesmo diante dos eventos históricos recentes da psiquiatria, como a Reforma Psiquiátrica, as antigas concepções de loucura impregnam a civilização atual. Essa leitura faz perceber que a “loucura é uma produção social histórica, mediada em grande medida por discursos, práticas e produções de representações sobre o estado de saúde mental dos pacientes” (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014, p. 123).
Partindo dessa concepção, a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) se concentra nas intervenções e trabalhos específicos implementados por equipes multi e interdisciplinares. A mudança no olhar a loucura e os hospitais psiquiátricos como manicômios aponta uma evolução positiva na qualidade de vida e conquista relacionada ao exercício da cidadania dos pacientes psiquiátricos e movimenta-se para uma produção social caracterizada pelas demandas da saúde na sociedade contemporânea (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
No Brasil, no final na década de 1970, as primeiras eclosões em favor da RPB e da criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTST) tinham como principal objetivo proporcionar condições para a desconstrução do modelo manicomial de então (FIGUEIREDO, 2019; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021). ARPB iniciou-se, de forma ainda incipiente, nos anos 80 no contexto da reforma sanitária e da criação do SUS e da Constituição de 1988 (FIGUEIREDO, 2019). Do MTSM, primeiro sujeito coletivo com o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica (AMARANTE; NUNES, 2018), proveio a noção de saúde mental em amplo processo de reformulação das políticas psiquiátricas que se firmaram com novos dispositivos de assistência aos doentes mentais, pejorativamente alcunhados de “loucos”, e a consolidação de projetos da reforma psiquiátrica (FIGUEIREDO, 2019). A RPB pressupunha estabelecer uma nova relação entre sociedade, sofrimento mental e instituições a fim de “ofertar outro lugar social para a loucura e promover o aumento das potências de vida das pessoas em sofrimento mental” (SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021, p. 3).
O MTST era um movimento plural formado por “trabalhadores integrantes do movimento sanitário,associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas”. Este Movimento, por meio de variados campos de luta, denuncia a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de uma rede privada de assistência (hospícios, hospitais gerais, Santas Casas), e busca construir, uma crítica coletiva ao chamado “saber psiquiátrico e ao modelo hospital ocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais” (BRASIL, 2005, p. 7).
Figueiredo (2019) lembra que a RPB apresenta articulações com os profissionais “psi”, com ênfase na orientação da psicanálise para o trabalho coletivo em equipe na saúde mental e suas interfaces. A psicanálise transformou a clínica a partir de questionamentos da Psiquiatria tradicional até as novas práticas no campo que surge como consequência da reforma, e se estabeleceu como campo da Atenção Psicossocial da Psicanálise (APP) para formação de psicanalistas a partir das experiências na saúde pública, ampliação do conceito de clínica e diversificação das práticas que mostram outra dimensão do trabalho na área da saúde. Tais práticas se desenvolveriam, inicialmente, em ambulatórios públicos e, posteriormente, em “redes” intersetoriais de serviços no regime do SUS no Brasil.
Para a compreensão da psiquiatria, Freud trouxe contribuições primorosas com seus estudos sobre a loucura, que ajudariam a minimizar o estigma de “louco”. Com a criação da clínica das enfermidades mentais, o conceito de “louco” transmuda-se para um novo status, o de “doente mental”: o louco, como qualquer doente, necessita de tratamento, cuidados, apoio e remédios (BIRMAN, 2010). O “louco” passou a ser um sujeito destituído de razão e, como tal, excluído socialmente, um doente mental, um alienado (HEIDRICH, 2007). Santo (2019) corrobora que, se, inicialmente, o indivíduo era visto como louco, seu diagnóstico psiquiátrico o apresenta como portador de dificuldades mentais com desdobramentos na vida privada e social: o louco, agora enquadrado e reconhecido como “doente mental”, deve ter respeitada sua complexidade e totalidade como sujeito, sem ser reduzido a um determinado diagnóstico e a uma psicopatologia.
A RPB trouxe diretrizes para a área de Saúde Mental, subscritas pelo Ministério da Saúde. Tais diretrizes defendiam o tratamento extra-hospitalar, limitavam o período de internação, estimulavam a reintegração familiar e a promoção de pesquisas epidemiológicas no campo da Saúde Mental, sugerindo a inversão de uma política nacional privatizante para estatizante e um ordenamento de hospitalização para uma fase de desospitalização (VASCONCELOS, 2008). A RPB, como processo social complexo, referia estratégias de desinstitucionalização que não se reduziam à reforma de serviços e tecnologias de cuidado, embora importantes, nem se limitavam a aspectos clínicos e terapêuticos, mas ao delineamento de um lugar social para a “loucura”, considerado como uma das principais referências para elaboração de estratégias e dispositivos políticos, sociais e culturais (VASCONCELOS, 2017). A desinstitucionalização tinha a perspectiva de “desconstrução no modelo manicomial e de transformação das relações de poder para que os pacientes se tornem sujeitos ativos e não meros objetos de intervenção” (SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021, p. 3). Objetivava, ainda, a estruturação de rede de serviços substitutivos que pudessem oferecer cuidado integral e de base territorial.
No final da década de 1980, surgiram novos serviços, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), implantado em 1987, e o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), em 1989, que proporcionam consultas médicas, atendimento psicológico, serviço social, terapia ocupacional, entre outros serviços. Esses organismos constituem campos significativos de atuação de psicólogos com atividades de “acolhimento, discussão de casos em equipe, psicoterapias, atendimento às crises, elaboração de planos individuais de cuidado, grupos e oficinas, atividades dirigidas diretamente à reinserção social”, dentre outras (CFP, 2013, p. 85).
O CAPS forma uma rede assistencial externa e funciona como filtro de atendimento entre hospital e comunidade, com prestação de serviços, de preferência, comunitária: busca entender a comunidade e instrumentalizá-la para o exercício da vida civil. A assistência prestada é de atenção integral, com proposta de atividades psicoterápicas, socioterápicas (arte e terapia ocupacional de caráter multidisciplinar). Pensa o sofrimento psíquico no campo da saúde coletiva e considera o contexto em que o indivíduo está inserido (família, trabalho, cultura, contexto histórico); oferta um atendimento personalizado e um tratamento de intensidade máxima, sistematizando informações e experiências (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2001). Segundo Scheffer e Silva (2014, p. 367), o CAPS, que integra o serviço de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), destina-se ao cuidado de pessoas em sofrimento psíquico grave e tem como função “promover a inserção social das pessoas com transtornos mentais, por meio de ações intersetoriais, e regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na sua área de atuação, dando suporte à atenção em saúde mental na rede básica”. Seu processo de trabalho em saúde mental se pauta em uma concepção ampliada de saúde com base no SUS, implicada com o contexto econômico, social e cultural do país, envolvendo situações de moradia, saneamento, renda, alimentação, educação, acesso ao lazer e bens – concepção que abre canais de democratizaçãodos saberes profissionais e das informações acerca do processo de saúde/sofrimento psíquico (SCHEFFER; SILVA, 2014).Assenheimer e Pegoraro(2019) assinalam que o CAPS presta atendimentos individuais (farmacológico, psicoterápico) e em grupos (psicoterapia, atividades de suporte social, oficinas terapêuticas), visitas domiciliares, atendimento à família, e atividades que integrem o usuário às vivências comunitárias e familiares. Tais ações são viabilizadas por uma equipe de profissionais com formação em saúde mental: médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos, artesãos, técnicos de enfermagem, administrativos e educacionais (BRASIL, 2002).
Por seu turno, o NAPS tem como eixo a desconstrução do manicômio, sem segregar nem excluir. Como instituição de saúde, o NAPS possui estratégias essenciais para a efetivação de seus objetivos, tais como: regionalização para conhecer as necessidades e demanda psiquiátrica; abertura do debate aos cidadãos e diálogo com a comunidade (participação de associações, sindicatos, igrejas) para melhor compreensão da loucura e da exclusão social; e elaboração de projeto terapêutico para envolver o cuidar do outro, evitar o abandono e atender à crise (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2001).O NAPS/CAPS formam um conjunto de serviço extra-hospitalar, que presta assistência multiprofissional e busca reinserir socialmente seus usuários para prevenir as internações psiquiátricas desnecessárias e compulsivas, e combater o preconceito e a discriminação. Suas ações integram a família e a sociedade em geral, numa busca constante da melhoria da qualidade de vida e promoção da cidadania dos usuários.
Todavia, transformar práticas no âmbito da saúde mental e efetivar pressupostos de movimentos antimanicomiaisimplica transformações em diversos âmbitos: do teórico ao cultural, de práticas antigas para a construção de políticas e modelos de atenção de novas práticas no campo da assistência à saúde mental, produzindo transformações no lugar social dado à loucura (hoje, considerada como psicopatologia em suas várias abordagens), questionando a estigmatização e a marginalização de grupos sociais, valores e representações da loucura enraizados na sociedade (KODA; FERNANDES, 2007).A partir do movimento antimanicomial, do incremento do ambulatório e dos novos dispositivos de atenção psicossocial e do trabalho em redes, os profissionais ‘psi’ transitaram por um longo percurso (FIGUEIREDO, 2019). Em 2001, a Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001),conhecida como Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, regulamentou a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais (pacientes psiquiátricos) e redirecionou o modelo assistencial em saúde mental, com críticas ao modelo hospitalocêntrico (BRASIL, 2005). Esta assertiva é reiterada em Brasil (2004) quando, referendando Brasil (2001), “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos psíquicos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.
Propuseram-semudanças no atendimento aos pacientes psiquiátricos e, para a sociedade,elegeu-se uma visão nova de loucura, que deixa de ser objeto para manicômios, e os sujeitos ditos “loucos” passam a ser reconhecidos como sujeitos de direito, em sofrimento mental (FIGUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Todavia, apesar das novas diretrizes e avanços proporcionados pelas leis para o atendimento dos indivíduos portadores de transtornos mentais, na atualidade ainda persistem dificuldades em sua assistência, que envolvem especialmente concepções e representações sociais da loucura. Portanto, são necessárias ressignificações, novas subjetividades e transformações sociais acerca do conceito desse transtorno.
A Reforma Psiquiátrica, alicerçada no Sistema Único de Saúde (SUS), tem princípios norteadores referentesà “saúde, como um direito fundamental e dever do Estado, enfatizando o acesso universal na atenção em saúde mental com base em integralidade, intersetorialidade, equidade, universalidade, igualdade e no controle social” (SCHEFFER; SILVA, 2014, p. 367). As “Referências Técnicas para atuação de Psicólogas (os) nos CAPS”, elaboradas pelo CFP, conferem ao psicólogo a atribuição de desenvolver atividades de“ acolhimento, discussão de casos em equipe, psicoterapias, atendimento às crises, elaboração de planos individuais de cuidado, grupos e oficinas, atividades dirigidas diretamente à reinserção social, dentre outras” (CFP, 2013, p. 85). O documento ainda elenca práticas inovadoras como aproximação da população rural com a comunidade e uso de diferentes recursos artísticos para a execução de grupos e oficinas.
Scheffer e Slva (2014, p. 373-374), com base em Brasil (2001, 2011) e a Portaria n. 3.088/ 2011 (BRASIL, 2011), reportam o funcionamento da rede de atenção da saúde mental, alinhando as seguintes diretrizes: respeito aos direitos humanos, garantia da autonomia e da liberdade das pessoas, de acesso e da qualidade dos serviços; oferta de cuidado integral e assistência multiprofissional, de forma interdisciplinar; promoção da equidade e reconhecimento dos determinantes sociais da saúde; combate a estigmas e preconceitos; atenção humanizada, centrada nas necessidades dos indivíduos; diversificação das estratégias de cuidado; desenvolvimento de atividades no território, para inclusão social, promoção de autonomia e exercício da cidadania; desenvolvimento de estratégias de redução de danos; ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares; organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado; promoção de estratégias de educação permanente; e desenvolvimento do cuidado para pessoas com transtornos mentais e necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, cujo eixo central é a construção do projeto terapêutico singular.
Segundo Assenheimer e Pegoraro (2019), pode-se dizer que os psicólogos se deparam com desafios diante da possibilidade de reconstruir um modelo oposto ao discurso biomédico e à perspectiva reducionista a respeito da experiência da loucura, o qual considera o sujeito apenas como um corpo enfermo a ser contido (em hospitais psiquiátricos) e medicado. Trata-se de um desafio de reconhecimento da dimensão cultural que permeia a existência desses sujeitos e suas subjetividades. Esse reconhecimento se apresenta como essencial para resgatar a dimensão humana do fenômeno da loucura e a dimensão do sofrimento que atravessa essa experiência humana (CFP, 2013; BELOTTIet al., 2017).
Todavia, a consolidação da RPB ocorre de forma não linear, marcada por avanços, retrocessos e tensões na disputa de poder. Desafios ainda precisam ser enfrentados, mesmo diante da conquista dos avanços substanciais (AMARANTE; NUNES, 2018; LIMA, 2018). Entre esses avanços podem ser destacados: a reversão da centralidade do cuidado hospitalar para a expansão da rede comunitária, a expressiva redução de leitos psiquiátricos e o aumento da oferta de novas tecnologias de cuidado, a reivindicação da autonomia e da cidadania dos sujeitos em sofrimento, a cobertura dos serviços extra-hospitalares e a criação de um novo modelo de cuidado com base na lógica comunitária e territorial, superando o discurso biomédico reducionista. Santos, Fonseca e Kyrillos Neto (2020, p. 13) ratificam que, após longo e árduo processo de luta, a RPB seguiu seu curso, culminando, nos primórdios da década de 2000, em “normatização dos dispositivos territoriais de atendimento”: as propostas discutidas “deixaram de ser alternativas para tornarem-se foco do atendimento dos sujeitos portadores de sofrimento mental grave”.
Embora existam expressivos avanços nesse campo, ainda se registra a estigmatização social dos sujeitos portadores de sofrimento mental ou com necessidades decorrentes do uso de substâncias psicoativas (LIMA, 2018), sem contar a reprodução de práticas burocratizadas e engessadas, falhas na articulação intra e intersetorial, dificuldades para superar problemas e melhor efetivação do processo de reformas para atendimento aos portadores de distúrbio psiquiátricos.
Atualmente, assiste-se à construção e solidificação progressiva da rede de atenção psicossocial articulada à atenção primária em saúde. Essa articulação é ponto crucial que sustenta as ações em rede e contribui para o compartilhamento do cuidado em suas diferentes modalidades de forma a fugir das ameaças cotidianas da burocratização e estagnação das práticas. O profissional ‘psi’ não trabalha mais sozinho, mas em conjunto com outros profissionais, o que é essencial redirecionar o cuidado para diferentes ações, compartilhando seus atos e decisões, mesmo diante de posicionamentos diferenciados ou conflitantes.
É, igualmente, relevante a participação dos usuários e seus familiares em todas as instâncias previstas pelas estruturas do SUS (BRASIL, 2005, p. 40). É no cotidiano dos serviços da rede de atenção à saúde mental, nos movimentos sociais e “na luta por uma sociedade sem manicômios […] que usuários e familiares” conseguem garantir seus direitos, “apoiar-se mutuamente e provocar mudanças nas políticas públicas e na cultura de exclusão do louco da sociedade”. Afinal, o grande desafio da Reforma Psiquiátrica Brasileira está na construção de um novo lugar social para os “loucos” de forma a ultrapassar o paradigma da tutela do louco e da loucura.
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