Reynaldo Gianecchini. Fernanda Lima. Deborah Secco. Cauã Reymond. Bruna Marquezine. Rodrigo Hilbert. Thiago Martins. Letícia Sabatella. Letícia Spiller. Marcello Anthony. Alinne Moraes. Ana Furtado. A lista vai em frente, reunindo quase três dezenas de atores famosos, muitos deles do primeiríssimo time.
Mas não se trata de uma novela da Globo, nem de um especial comemorando os 70 anos da televisão brasileira. Toda essa turma aparece no filme “Flordelis: Basta uma Palavra para Mudar”, lançado em 2010 sem maior repercussão.
O longa –ou, mais precisamente, seu trailer– ressurgiu esta semana, quando a missionária e deputada federal (PSD-RJ) Flordelis dos Santos Souza foi acusada de ser a mandante do assassinato de seu marido, o pastor Anderson do Carmo, executado com mais de 30 tiros em junho de 2019.
Apesar da constelação de celebridades, trata-se de uma produção modesta, quase amadora. A edição arrastada do trailer, que tem mais de cinco minutos de duração (o padrão habitual é inferior a três minutos) mostra que seus responsáveis não são do ramo. Os nomes de alguns atores aparecem grafados incorretamente (“Marquesine”, “Reinaldo”).
Por fim, a música xaroposa e as atuações “edificantes”, sem a menor sutileza, deixam claro o objetivo: o filme é uma peça de propaganda destinada a arrebanhar fiéis para a Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, a igreja fundada pelo então casal na zona norte do Rio de Janeiro.
Nenhum dos atores cobrou cachê. Alguns dizem ter trabalhado um único dia, e conhecido Flordelis no momento das filmagens. Todos acreditavam estar contribuindo para um importante projeto social.
Se esquecermos por um momento o que aconteceu depois, o trailer de “Flordelis: Basta uma Palavra para Mudar” pode ser analisado como uma cápsula da cultura pop brasileira. É sintomático do nosso racismo estrutural que um filme voltado para as camadas mais humildes da população tenha apenas duas atrizes negras em seu elenco principal: Chris Vianna e Isabel Fillardis. Chega a ser engraçado ver Reynaldo Gianecchini ou Rodrigo Hilbert, com suas carinhas de quem foi tratado a vida toda a leite com pera, posando de perigosos traficantes.
Por outro lado, Flordelis esbanjou prestígio ao reunir tantas estrelas para uma obra descaradamente chapa-branca, em que ela interpreta a si mesma –ou melhor, uma versão idealizada de si mesma, como iríamos descobrir uma década mais tarde.
Este tipo de filme não é raro no Brasil. Outro exemplo recente é o documentário “João de Deus: O Silêncio é uma Prece”, que estreou em 2017 e foi retirado de circulação um ano depois, quando o suposto médium foi desmascarado como o abusador de centenas de mulheres.
Os dois casos ilustram o perigo, para um artista, em embarcar num projeto laudatório para alguém ainda em vida –especialmente se o homenageado for ligado a uma religião. Esse tipo de obra costuma custar muito dinheiro e, onde há muito dinheiro, também aumentam as chances de haver maracutaia.
Enquanto diversos membros da imensa família de Flordelis vão sendo presos e a própria deputada se protege atrás da imunidade parlamentar, os atores que participaram de “Basta uma Palavra para Mudar” se declaram constrangidos por terem se envolvido com um esquema sórdido. Provavelmente, daqui em diante será mais difícil que grandes estrelas concordem em aderir a títulos do gênero.
Mas é claro que o caso Flordelis clama por um outro filme. Ou talvez uma minissérie documental, como a história do próprio João de Deus já rendeu para o Globoplay. Uma história com tanto sangue, poder e dinheiro, além de tentativas de envenenamento e complicadas relações de parentesco –tudo isto, embalado por baladas gospel – desafia a imaginação do mais delirante roteirista.