A Justiça Militar de São Paulo concluiu que o policial militar que algemou e puxou um jovem negro por 300 metros numa moto da corporação, em 30 de novembro de 2021, não cometeu os crimes de abuso de autoridade e constrangimento ilegal pelos quais era investigado. Por este motivo, o Tribunal de Justiça Militar (TJM) arquivou o caso. Um Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o caso também já havia sido arquivado.
A decisão é de maio de 2022, mas só foi conhecida nesta quarta-feira (15) pelo g1. O TJM confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que foi determinado o arquivamento após recomendações do Ministério Público (MP) e da Corregedoria da Polícia Militar (PM).
O caso repercutiu na imprensa e nas redes sociais à época depois que vídeos viralizaram na internet.As imagens mostram o cabo Jocélio Almeida de Souza, da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam) da Policia Militar (PM), puxando o desempregado Jhonny Ítalo da Silva.
As cenas foram gravadas por testemunhas que passavam pela Avenida Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello, na Vila Prudente, Zona Leste da capital paulista.
As filmagens postadas na web provocaram reações e debates de especialistas em segurança pública, direitos humanos e personalidades. Especialistas criticaram a abordagem, classificando-a como tortura e racismo. Apesar disso, nenhuma autoridade jamais investigou isso desde então.
Jhonny havia sido preso em flagrante por que desobedeceu uma ordem da PM e não parou a moto que pilotava numa blitz policial. Em seguida, ele bateu o veículo numa ambulância e fugiu.
Nos vídeos, é possível ver o rapaz com a mão esquerda algemada na moto do cabo, que o puxa pela avenida. Os advogados de Jhonny chegaram a afirmar que seu cliente também foi arrastado, apesar de as imagens não mostrarem isso.
Ele foi levado pela Polícia Militar a uma delegacia, onde acabou autuado pela Polícia Civil por dirigir sem habilitação e indiciado por transportar 11 tijolos de maconha escondidos numa mochila de entregas.
“Me senti humilhado, tive medo de morrer. Cometi um erro, mas não merecia ser humilhado”, escreveu Jhonny num bilhete ao Fantástico, em reportagem exibida em dezembro de 2021, quando ele ainda estava preso.
Em março de 2022, a Justiça condenou Jhonny a 2 anos e 2 meses de prisão em regime fechado, por tráfico de drogas e dirigir sem habilitação. Atualmente ele cumpre a pena em liberdade, tendo de comparecer mensalmente ao fórum para assinar documentos e informar que está trabalhando ou estudando, por exemplo.
IPM foi arquivado
A Corregedoria da PM chegou a abrir um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar Jocélio por abuso de autoridade e constrangimento ilegal contra Jhonny. O cabo foi afastado preventivamente durante a investigação.
Mas como o órgão entendeu que o agente não cometeu nenhum desses crimes militares, sugeriu o arquivamento do IPM. O MP concordou, e o TJM decidiu arquivar o caso.
As decisões dos três órgãos contrariam, no entanto, a posição da própria Polícia Militar. Em 2021, a corporação havia divulgado nota à imprensa criticando a abordagem feita por Jocélio:
“A Polícia Militar repudia tal ato e reafirma o seu compromisso de proteger as pessoas, combater o crime e respeitar as leis, sendo implacável contra pontuais desvios de conduta”, informava trecho do comunicado da corporação.
Se o IPM o considerasse culpado por abuso de autoridade e constrangimento ilegal, Jocélio poderia ser punido com advertência, suspensão ou até expulsão da Polícia Militar.
Defesa do PM
A corporação e a Secretaria da Segurança Pública (SSP) foram procuradas nesta quarta-feira (15) pelo g1 para comentar o assunto, mas não se posicionaram até a última atualização desta reportagem.
João Carlos Campanini, advogado de Jocélio, falou que desconhecia o arquivamento até ser procurado pelo g1. “Está arquivado”, confirmou depois.
Em outras oportunidades, a defesa do cabo alegou que seu cliente agiu corretamente na abordagem a Jhonny.
“O militar só tinha duas opções: deixar o rapaz fugir ou prender ele na moto e levar até um local seguro para aguardar a chegada de uma viatura de quatro rodas. Se ele o deixa fugir, iria responder por prevaricação e ainda deixaria mais um bandido à solta. Algemar na viatura motocicleta foi o único meio que o militar tinha naquela hora para fazer seu trabalho na integralidade”, declarou Campanini no ano passado.
Apesar de a Corregedoria da PM ter arquivado o caso contra Jocélio por ter puxado o jovem negro, o IPM apontou “indícios de transgressão disciplinar” cometidos pelo cabo e outro colega dele, o soldado Rogério Araújo da Silva, durante a abordagem a Jhonny “em relação aos procedimentos operacionais adotados”.
O g1 questionou a pasta da Segurança e a Polícia Militar para saber quais foram essas transgressões disciplinares, mas não teve resposta até a última atualização desta reportagem.
Advogado de jovem pede indenização
“Foi surpresa o arquivamento sem punição dos agentes”, disse nesta quarta o advogado de Jhonny, Valdomiro Pereira da Silva.
Ele e outros advogados entraram em janeiro de 2023 com uma ação na Justiça, na esfera cível, pedindo que ela condene o governo de São Paulo a pagar R$ 1 milhão de indenização por dano moral ao jovem negro por ter sido puxado pelo PM numa moto.
“O fato de a apuração ter essa conclusão de arquivamento não significa que o Estado deixará de indenizar o autor. Porque o mal foi causado, e o experimentado pelo autor teve grande repercussão negativa para o Estado”, falou Valdomiro.
O documento foi encaminhado à 5ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça (TJ). O pedido de indenização foi feito pelo escritório dos advogados Valdomiro, Kelvin Bertolla e Ricardo Corsini.
Até a última atualização desta reportagem não havia nenhuma decisão judicial a respeito do pedido de indenização. Tanto a Polícia Militar quanto a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que são do governo paulista, já se posicionaram contrários ao pagamento da indenização. Os órgãos alegaram que a abordagem do cabo que puxou o jovem negro foi correta.
“Em resumo, os atos praticados pelo Estado, desde a abordagem e a apuração do procedimento administrativo, passando pelo inquérito policial e processo criminal, foram absolutamente legítimos, objeto de apuração interna, conforme documentos acostados, não se podendo falar em abuso de qualquer espécie”, informa trecho do documento que a PGE enviou à Justiça.
Procurado para comentar o assunto, o governo paulista respondeu por meio de nota que “a assessoria jurídica do governador de Tarcísio de Freitas [Republicanos] vai aguardar a publicação do acórdão para analisar eventual possibilidade de recurso.”
“Racismo estrutural”
As associações Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo também entraram à época com uma ação civil pública na Justiça contra o governo de São Paulo.
Segundo essas entidades, o caso protagonizado pelo policial militar contra o jovem negro foi uma “manifestação explícita de racismo estrutural e institucional”. Diante disso, elas pedem uma “reparação de dano moral coletivo e dano social infligidos à população negra e ao povo brasileiro de modo geral, em razão de graves atos de violência policial”.
A ação proposta pela Educafro e pelo Centro Santo Dias solicita uma indenização de R$ 10 milhões do governo, a ser revertida ao Fundo Estadual de Direitos Difusos do Estado de São Paulo. Além disso, propõe que a Justiça obrigue o estado a implantar medidas antirracistas na Polícia Militar.
Ainda não há decisão judicial a respeito do pedido.