“O caos foi generalizado, as pessoas estão em pânico e vocês estão ralados”, anunciava a voz ao microfone, numa terça-feira (16) de garoa insistente em Curitiba, em frente à sede do Tribunal Regional Eleitoral.
O grupo, de cerca de 20 pessoas, protestava contra o que qualifica como “omissão” da Justiça Eleitoral em apurar as queixas de “centenas, milhares de eleitores” contra um sistema que opera sem máculas há 22 anos e que, até pouco tempo, era considerado um orgulho nacional: a urna eletrônica.
A reclamação de quem diz não ter conseguido votar para presidente pipocou pelo país no primeiro turno e, em resposta, tribunais eleitorais em cinco estados começaram nesta semana a realizar a auditoria de urnas eletrônicas que foram alvo de queixas.
São urnas de seções em que eleitores de Jair Bolsonaro (PSL) afirmaram (e registraram formalmente, em ata ou boletim de ocorrência) que não conseguiram finalizar o voto para presidente -ou porque a foto não apareceu, ou porque a votação se encerrou antes de se apertar o “confirma”.
As auditorias, que em alguns casos serão acompanhadas por peritos indicados pelo PSL e entidades como a OAB e o Ministério Público, devem ocorrer entre esta quinta (18) e sábado (20), nos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais.
A Justiça Eleitoral diz estar exercendo “o dever de processar e apurar todas as denúncias de irregularidades”, e afirma que as novas auditorias se somam a práticas de verificação e segurança que já são praxe nas eleições. Mas, ao mesmo tempo, servidores criticam o clima de histeria em relação ao tema, em especial com a difusão de notícias falsas.
No Paraná, onde 756 urnas foram substituídas no primeiro turno (pouco menos de 3%, em um total de 26.792 seções), a reportagem presenciou eleitores se queixando, nos locais de votação, de que “um amigo foi apertar o 1 e apareceu o 13”, ou que “tinha uma fila enorme no colégio aqui perto porque duas urnas estavam fraudadas”.
Nenhuma das histórias foi confirmada -a primeira, motivada por um vídeo replicado pelo filho do presidenciável do PSL, o senador eleito Flávio Bolsonaro, foi desmentida naquele mesmo dia pelo TSE.A segunda, apurada pela Folha de S.Paulo, se mostrou falsa: nenhuma urna fora trocada na escola indicada pelo eleitor.
Servidores da Justiça Eleitoral reagiram, e reclamaram de “fantasias” e “teorias da conspiração”.
“O direito de manifestação não é absoluto, e não pode servir de instrumento à desestabilização social”, afirmou o presidente do TRE em Santa Catarina, Ricardo Roesler.
No estado, a Polícia Federal abriu inquérito para apurar a disseminação de denúncias de fraude sem base, que podem caracterizar um crime eleitoral ou até contra a segurança nacional.
“O eleitor tem todo o direito de reclamar. Mas a denúncia tem que ser séria”, disse o procurador regional eleitoral em Santa Catarina, Marcelo da Mota. “É isso que quero apurar: se as denúncias são genuínas, e não fruto de um movimento ligado a um partido ou a uma candidatura.”
Até mesmo a manifestação do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) acabou virando alvo de um inquérito do Ministério Público Eleitoral -ele gravou um vídeo no dia da votação dizendo ter identificado urnas que “ou são fraudadas, ou adulteradas”.
“Está escancarado que está havendo problemas. Uso aqui minha imunidade parlamentar. Nós não vamos aceitar esse resultado”, disse ele no vídeo.
Seu advogado diz não ver crime na manifestação, e afirma que Francischini usou uma linguagem atécnica para arguir sobre temas de interesse público.
A queixa dos eleitores que disseram não ter conseguido votar foi recorrente. Em uma única urna em Santa Catarina, sete eleitores registraram problemas de forma oficial.
“O que nós queremos é auditagem. As pessoas foram votar e não conseguiram; isso é fato”, diz o advogado do PSL no Paraná Gustavo Kfouri, que impugnou quatro urnas no dia da votação. “Eu não posso fazer juízo de valor, mas posso proceder legalmente e pedir a análise técnica.”
Em algumas seções, eleitores se revoltaram por não terem conseguido votar. “Pulou o presidente, disse fim, e não apareceu mais nada”, afirmou a pedagoga Vânia Dalmaz, 63, que registrou o caso em ata. Foi a única queixa em sua seção, onde a urna não foi substituída.
“Eu atribuo [os problemas] a uma intervenção do PT”, disse à Folha a eleitora Dirlete Faccio, 65. “Eles não estão no governo, mas são cupinchas dele. Eu tenho certeza que o Bolsonaro ganharia em primeiro turno, mas, com essa loucura dessa gente que vai perder a mamata, fizeram isso.”
Segundo quem reclama, há motivos para a desconfiança -em especial, a negativa da Justiça Eleitoral em implantar o voto impresso, mesmo após a decisão favorável do Congresso. “Foram argumentos pífios”, disse a advogada e manifestante Patrícia Busatto, durante reunião com o TRE em Curitiba.
Eles se queixam também da falta de informação sobre como proceder em caso de falha da urna, e pedem respostas aos tribunais sobre o que ocorreu aos votos.
Para os eleitores, há uma tentativa de “mordaça” contra suas denúncias. “Como pode, o ministro da segurança [Raul Jungmann] vir a público e ameaçar aqueles que denunciarem fraudes? Disse que, se denunciassem sem provas, seriam presos. O que é isso?”, afirmou Busatto. “Nós não vamos nos calar.”
Para a Justiça Eleitoral, houve uma “provocação excessiva”.
“A urna é só um equipamento; há toda uma estrutura, com técnicos e servidores íntegros, que trabalham há anos na Justiça Eleitoral e estão vendo seu trabalho sendo jogado no lixo”, disse Mota, procurador em Santa Catarina. “Não dá para confundir isso com o que o PT fez no governo federal.”
Juízes eleitorais destacam que os boletins de urna, uma espécie de relatório de votação de cada urna, mostram que, nas seções em que houve queixa, todos os votos para presidente, de todos os eleitores presentes, foram registrados.
Numa das urnas com maior número de reclamações, no colégio Positivo Júnior, em Curitiba, não houve um único voto nulo.
Os TREs reiteram que irão apurar toda denúncia de irregularidade ou falha registrada em ata, e pretendem concluir seus relatórios até antes do segundo turno. Mas destacam os procedimentos de segurança já implantados nas urnas: são cerca de 30 barreiras de segurança, que incluem criptografia, travas à execução do sistema em caso de detecção de irregularidade e assinaturas digitais feitas por entidades como TSE, Ministério Público e Polícia Federal, além de resumos digitais, garantindo a sua autenticidade e integridade.
“Existe uma diferença entre falha e fraude”, afirmou à Folha o presidente da OAB no Paraná, José Augusto Araújo de Noronha. Ele defende que as queixas sejam registradas e eventuais falhas, apuradas e corrigidas, mas rechaça alarmismo.
Para o segundo turno, Noronha defende que os tribunais preparem cartazes e orientem o eleitor sobre o que fazer em caso de problemas.
Os mesários devem ser alertados, a queixa, registrada na ata da seção, e a urna pode acabar impugnada por fiscais de partido e substituída por urnas de contingência.
A reinicialização e substituição de urnas que apresentam problemas é praxe e uma obrigação da Justiça Eleitoral. Com informações da Folhapress.