Há quase 30 anos, a uberabense Letícia Ramos convive com a glicogenose, uma doença rara que afeta o metabolismo do glicogênio no organismo. Para se manter saudável, a auxiliar de cozinha precisa manter uma dieta equilibrada e que inclui uma necessidade inusitada: a de consumir amido de milho dissolvido em água a cada 3 horas, diariamente.
Hoje, ela compartilha a rotina nas redes sociais e se tornou a “Rainha da Maisena” na internet. Em conversa com o g1, Letícia contou como é lidar com a doença, que atinge 1 a cada 25 mil pessoas no planeta.
Descoberta
Os pais de Letícia descobriram a doença da filha quando ela tinha dois anos e meio. Na época, ela apresentava diversos sintomas, como o abdômen estendido, tom de pele esverdeado, hipoglicemia e até convulsões.
“Me levavam em vários médicos, e diziam que era só dor de barriga, enfim, milhões de outras coisas. Eu passava muito mal. Aí minha mãe fez um escândalo num hospital e disse que não saia de lá enquanto eu não descobrisse o que era”, disse.
O diagnóstico de glicogenose do tipo 9C só veio depois de várias biópsias. Desde a descoberta, Letícia trata a doença em um hospital em São Paulo (SP). O alívio em saber o motivo dos sintomas, porém, não impediu que a uberabense tivesse uma infância difícil.
“Eu tinha muita vergonha de tomar o amido de milho, eu sempre queria sair correndo pra me esconder. Eu também já fui afastada pela escola algumas vezes por causa de problemas com dengue, porque eu não podia pegar. Foi uma vida bem assim, meio separada das outras pessoas”.
O desafio também foi grande para a família, que precisou acompanhar as várias internações da filha ao longo dos anos.
“Não tenho ideia de quantas internações foram. Ela parou de andar por algum tempo devido à doença, que causou uma miopatia muscular. Mas ela que me dá forças para continuar”, conta Juliana, mãe de Letícia.
Cotidiano
Com o tempo, o amido de milho se tornou um companheiro comum na rotina de Letícia. Para ajudar a controlar a glicemia, ela consome a substância dissolvida em água a cada 3 horas. Ao todo, ela ingere 20 kg do produto por mês.
A auxiliar de cozinha, que trabalha na pizzaria da família, conta que tem restrições alimentares e deve evitar alimentos com muito açúcar. Além disso, a uberabense precisa acordar de madrugada para tomar a medicação dentro do horário correto e manter a glicose em níveis controlados.
“Depois que você começa a se organizar, a doença se torna um pouco mais fácil de lidar. Tomo treze remédios por dia e a alimentação é bem regrada. Nada de sair por aí e comer qualquer coisa”, afirmou.
Mesmo com as dificuldades, Letícia encontrou uma nova forma de lidar com a doença de maneira mais leve: compartilhar a rotina dela na internet. E a ideia deu certo: em uma rede social, em que ganhou o título de “Rainha do Maisena”, ela já tem mais de 1,4 milhão de curtidas e passa dos 37 mil seguidores.
“Eu escondi por tanto tempo que eu precisava do amido de milho, e acabei decidindo mostrar para todo mundo. Não esperava toda essa repercussão”.
Além de entreter os seguidores, Letícia também consegue ajudar outras pessoas que também foram diagnosticadas com a doença.
“O que eu mais recebo de mensagem são mães que tem crianças pequenas e que não sabem ainda como lidar com a doença, tem aquele medo, aquela incerteza do que pode acontecer com o filho. Então eu sempre dou aquela ajuda, aquela acalmada, e isso é muito gratificante”.
O que é a glicogenose?
A glicogenose é uma doença que afeta o metabolismo do glicogênio, uma substância que funciona como um “estoque de carboidratos”, principalmente, no fígado.
Quando há uma necessidade maior de energia, como durante uma atividade física ou jejum prolongado, o organismo precisa fazer a degradação do glicogênio.
“Os portadores de glicogenose não tem essa capacidade por um defeito na enzima que degrada o glicogênio, ou seja, esse estoque não é mobilizado. Com isso, a doença pode afetar o fígado, os músculos e o intestino”, explica a endocrinologista e mestra em reabilitação Renata Liboni.
Segundo a médica, pessoas com glicogenose estão mais propensas a ter episódios de hipoglicemia, o que pode levar a convulsões e, em casos mais graves, à morte.
“Também estão mais propensos a inflamações respiratórias e, dependendo do grau, a alterações no crescimento, problemas no fígado, como cirrose e, até mesmo, o câncer no fígado”, acrescenta Liboni.
Amido de milho
Para ajudar os pacientes a controlar a glicemia, os médicos recomendam a ingestão do amido de milho, que evita o acúmulo do glicogênio no fígado.
“O amido de milho cru deve ser pesado em balança para um correto tratamento, evitando o excesso de ingestão de amido e obesidade desnecessária, e também evitando o tratamento insuficiente, não mantendo a glicemia em níveis normais”, diz a gastrohepatologista e cirurgiã de transplantes hepáticos Eloiza Quintela, que acompanha o caso de Letícia em São Paulo.
Ainda conforme Quintela, a aderência ao tratamento é um grande desafio tanto para pacientes, como seus familiares ou cuidadores, porque exige cuidados rigorosos e muita disciplina.
“É uma doença que impõe mais restrições aos portadores do que o diabetes. Em razão do risco de hipoglicemia, as pessoas acometidas por essa enfermidade devem se submeter a dietas rigorosas de restrições de açúcar e realizar vários testes diários do nível de glicose sanguínea”, finaliza.