Encher o bucho, ter viuvinha e dor nas cadeiras já não são expressões facilmente entendidas pelos mais jovens do interior de São Paulo como eram antes. Embora o “erre” arrastado ainda esteja presente na pronúncia, os jovens de cidades como Piracicaba, Capivari e Sorocaba não entendem termos usados pelos mais velhos, como picar a mula (fugir) e mover os quartos (quadril). Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que o dialeto caipira está caindo em desuso entre a população mais jovem, principalmente por influência da internet.
O “caipirês” está mais vivo no linguajar dos idosos, que usam menos as redes sociais e são, hoje, os verdadeiros guardiões do sotaque característico das cidades próximas ao Rio Tietê. O estudo da pesquisadora Lívia Carolina Baenas Barizon apontou que o Português verbalizado nessa região se aproxima da língua galega, falada na região ocidental da Península Ibérica, compreendendo partes de Portugal e de Galícia, comunidade autônoma da Espanha. Ao menos 82% das palavras usadas por esses paulistas possuem correspondência com termos do galego.
A pesquisa se ateve às cidades ao longo do Rio Tietê – moradores de Itu, Porto Feliz, Pirapora do Bom Jesus, Tietê e Santana de Parnaíba também contribuíram – porque a região foi importante para a difusão da Língua Portuguesa e do dialeto caipira quando os bandeirantes desciam o rio, interior adentro, até as barrancas do Rio Paraná, para desbravar terras e garimpar ouro. Segundo a pesquisadora, o dialeto caipira teria surgido nos núcleos familiares dessas cidades a partir do século 18.
PESQUISA
Lívia dividiu os 48 informantes em grupos de homens e mulheres por faixas etárias – jovens de 18 a 25 anos, adultos de 36 a 55 e idosos acima de 60. Um questionário com 138 perguntas foi apresentado, mas a pesquisadora usou também desenhos do corpo humano. “Para deixar os entrevistados bem à vontade, eu apresentava o desenho ou apontava partes do meu próprio corpo, pedindo que eles identificassem”, contou. No “caipirês”, barriga virou “bucho”, cabeça é “coco” ou “cachola”, pálpebra é “capela do olho”, e pescoço, “congote”.
Houve um predomínio do dialeto caipira entre os mais idosos, o que, segundo a pesquisadora, pode estar associado a menor influência das mídias digitais nessa faixa etária. “Uma das grandes influências que pude observar é da escolaridade, pois, quanto menor é ela, mais a língua fica estagnada. Assim, os idosos com menos escola mantiveram mais o dialeto”, explicou.
Os jovens, segundo Lívia, tendem a usar termos mais próximos da realidade deles, por terem maior escolaridade e pela influência das redes sociais. Entre homens e mulheres, elas lideraram a tendência ao desuso do dialeto.
Das 85 unidades lexicais selecionadas para análise, como barba, boca, cabeça, cotovelo, dedo, articulação e umbigo, por exemplo, 82,4% foram convergentes com o galego. Esse idioma e o Português têm semelhanças por causa de questões históricas e sociais e era falado na região onde hoje fica Portugal até meados do século 12, segundo a pesquisadora.
Na tese O léxico caipira: tesouro da língua às margens do Anhembi, defendida em seu doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a filóloga desvenda as origens do dialeto caipira, a partir do português e do galego. O estudo teve orientação do professor Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, e co-orientação da professora Maria do Socorro Vieira Coelho, da Universidade Estadual de Montes Claros.
“A pesquisa da Lívia tem grande importância para os estudos do Português falado em São Paulo, na região da cultura caipira, porque permite compreender os processos de variação e mudança da variedade que se expandiu dessa região para outras partes de Sudeste, Sul e Centro-Oeste do Brasil, pelos caminhos do Rio Tietê, antigo Anhembi”, disse o professor Almeida.