sexta-feira, 20 de setembro de 2024
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“Imagine”

Imagine. Imagine que a destruição se aproxima de sua casa, os sons de explosões, de tiros, gritos de dor, de desespero, de morte. O chão treme, as paredes racham, o…

Imagine.

Imagine que a destruição se aproxima de sua casa, os sons de explosões, de tiros, gritos de dor, de desespero, de morte. O chão treme, as paredes racham, o teto trinca. O barulho se intensifica, cada vez mais ensurdecedor.

Imagine que sua casa era a casa de seus pais, e de seus avós antes deles. Ou, então, que foi a casa que você mesmo construiu, com o seu trabalho, seu esforço, seu sacrifício, seu suor. O mesmo suor que agora escorre frio pela testa.

Imagine que o medo tornou-se quase palpável, e a guerra está nos olhos das pessoas, atrás da angústia e da sensação de impotência.

Imagine que, diante do absurdo, você não tem a quem recorrer. O Estado faliu, não existe; as autoridades estão espalhadas, esparsas e inertes. Não há mais polícia, apenas pessoas armadas e seus próprios interesses. Suas próprias vidas.

Imagine que você não tem mais direitos, não adianta poder ir e vir, não adianta poder falar o que pensa, não tem trabalho, não tem tranquilidade, não tem paz. A vida não é mais um direito, é um mérito dos que conseguem defendê-la, dos que conseguem mantê-la. Dignidade é apenas uma palavra.

Imagine que você tem uma família, que você se viraria, faria o que fosse possível para continuar vivo, mas sua esposa, seus filhos, seus pais idosos, não. São frágeis, inocentes e debilitados. E dependem de você, só de você.

Imagine que você tem que deixar tudo para trás e levar apenas a roupa do corpo. Seus objetos de família, suas conquistas materiais, suas recordações tangíveis, os vestígios de sua existência, tudo ficará para trás ou já foi destruído.

Imagine que você tem que deixar sua cidade natal e, aonde quer que seja, tem que ir a pé, pois você não tem carro ou o que tinha precisou vender ou foi destruído. Você tem que cruzar seu país a pé e rápido, pois a guerra está sempre mais e mais perto.

Imagine que ninguém quer receber você, que os países vizinhos já têm seus próprios problemas, suas próprias crises: a economia vai mal, as pessoas têm suas casas, mas não tem mais nada. Ou têm dívidas, apenas dívidas, e o temor de um fantasma que assoma no horizonte: você e os milhares que vêm junto.

Imagine que, mesmo que seja recebido, você será discriminado, pois é um incômodo. Você não é mais um ser humano, você é um peso, um fardo indesejado; você é mais um gasto.

Imagine que sua esposa está ferida, que seu filho está com fome, que seus pais estão machucados, que você mesmo não tem mais forças. E que, chegando aos limites, às fronteiras de seu país, você ainda tem um mar à sua frente para ser atravessado. O frio se aproxima. Não há agasalhos, não há cobertores, não há teto, não há cama. Não há comida, não há água. Tudo está escuro.

Imagine que você é só mais um entre milhares na mesma situação. Que você conseguiu um barco, mas o barco virou no mar, no meio da noite, e sua família escapou de suas mãos,

escorregou de seus dedos na escuridão, no frio. E você os encontrou a todos no dia seguinte na praia da “terra prometida”. Inertes, de bruços. Afogados. Mortos.

Imagine que você corria por esperança com seu filho no colo e foi jogado ao chão por um chute, uma rasteira covarde. Que no meio da multidão amontoada como animais, sua família tem fome, mas você não alcançou os poucos pães que os soldados, de máscaras cirúrgicas, jogaram atrás das cercas.

Imagine que talvez agora você esteja sozinho no mundo, que perdeu tudo e não tem garantia de mais nada. E que as provações estão apenas começando. A travessia das fronteiras, do mar, foi o prelúdio de um drama lírico. E que, como friamente sentenciou a princesa Turandot em seu enigma, tal qual um fantasma iridescente, a esperança abre as asas sobre a humanidade na noite sombria. Todos o invocam e todos o imploram, mas o fantasma desaparece com a aurora para renascer no coração. E cada noite nasce, e cada dia morre.

O. A. SECATTO

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