A Igreja da Inglaterra, matriz da Comunidade Anglicana, anunciou que quer explorar o uso de palavras alternativas para descrever Deus, depois que alguns clérigos pediram para usar uma linguagem mais inclusiva nos cultos.
O domínio do gênero masculino para se referir a Deus é um tema que vem sendo discutido cada vez mais. A teóloga feminista Mary Daly escreveu: “Se Deus é homem, o homem é deus”.
Em outras palavras, falar sobre o Deus cristão em termos exclusivamente masculinos privilegia os homens na sociedade e sustenta o domínio masculino.
De acordo com um porta-voz da igreja, Deus não tem gênero para a doutrina cristã oficial. No entanto, “Ele” é descrito quase exclusivamente em termos masculinos. E como a Igreja continua a lutar com questões de igualdade de gênero, o projeto provavelmente tende a se estender.
Críticos veem a discussão como uma tentativa de desfazer a longa tradição cristã de chamar Deus de “Ele” e “Pai”. Mas a linguagem e as imagens femininas sempre fizeram parte da história da Igreja.
Hildegard de Bingen, uma respeitada abadessa (madre-superiora) da Idade Média imaginou e retratou o lado feminino de Deus em sua arte e em seus trabalhos escritos. E nos anos 1300, a mística Juliana de Norwich falou sobre o lado materno de Deus.
Estudiosas feministas modernas, como Mary Daly e Joan Engelsman, argumentavam que a ideia de Deus em forma feminina foi estrategicamente eliminada da história cristã.
Segundo relatos, o projeto da Igreja é explorar o uso da linguagem neutra para fazer referência a Deus. Usar a palavra “Parent”, ao invés de “Father” (pai), é uma das opções avaliadas – em inglês, a expressão é usada em alusão aos genitores de um indivíduo, sejam eles homens ou mulheres.
Mas há outras propostas recentes para usar pronomes femininos, como “She” ( “Ela” em português).
Quando Libby Lane foi nomeada a primeira bispa mulher da Igreja da Inglaterra em 2014, ela argumentou a favor da aceitação do uso de pronomes femininos para se referir a Deus.
Ao mesmo tempo, o presidente do Mulheres e a Igreja, um grupo que defende a igualdade de gênero na Inglaterra, afirmou que a introdução de bispas teria impacto na vida das mulheres na Igreja “somente se Deus for tanto ela quanto é ele – porque este é um aspecto muito formativo da vida da nossa Igreja e um verdadeiro bastião do sexismo”.
Rachel Treweek, consagrada bispa em 2015, juntou-se ao debate defendendo a eliminação de todos os pronomes de gênero para Deus.
Um ‘Deus’ sem gênero?
Em pesquisa com mulheres que fazem parte do clero, identifiquei indícios de que algumas delas podem não se sentir confortáveis com o fim da linguagem masculina tradicional.
Uma vigária chegou a afirmar que “o inferno explodiu” quando, durante uma sessão de estudos bíblicos, alguém sugeriu que a oração do Pai Nosso começasse com as palavras “Mãe Nossa”.
O uso da expressão “Parent” também preocupa o reverendo Ian Paul, teólogo associado à Igreja São Nicolau, em Nottingham, Londres. Segundo ele, as palavras “Father” e “Parent” não são intercambiáveis e têm significados diferentes.
A maneira como as palavras transmitem um gênero é, obviamente, parte do problema. A teóloga feminista Rosemary Radford Ruether argumenta que mesmo palavras que parecem neutras não são, pois “Deus” evoca imagens masculinas.
Para complicar ainda mais, palavras masculinas são às vezes forçadas a representar tanto o gênero masculino quanto o feminino.
Uma sacerdotisa, por exemplo, disse que vê “Father”, ou “Pai”, como a única forma de descrever Deus. Mas “pode ser que as ideias sobre a paternidade precisem mudar”, afirmou.
Outra entrevistada disse que vê o termo “Father” como masculino e feminino.
Essas complicações em torno da linguagem e do gênero sugerem que um projeto para usar linguagem neutra precisará refletir profundamente sobre o que significa e constitui o gênero “neutro”.
Explorando outros nomes para Deus
Embora minha pesquisa sugira que há um apego a palavras como “Pai” entre algumas mulheres do clero, várias entrevistadas me disseram que tentaram evitar usar qualquer linguagem que identifique o gênero para falar de Deus.
Alguns sugeriram o uso de “Goldself” para substituir os pronomes masculinos.
“Quando ouvi Godself sendo usado, gostei bastante. Essa é uma sugestão. [Mas] dentro das paróquias acho que chamaria a atenção quando não necessariamente é nisso que queremos nos concentrar”, afirmou uma mulher.
Há ainda uma sensação de que algumas congregações podem não estar dispostas a adotar a mudança linguística, mesmo que haja o desejo entre o clero.
A discussão sobre o uso de linguagem neutra para descrever Deus é, no mínimo, um reconhecimento de que o domínio da linguagem masculina é um problema.
Muitos gostam da possibilidade de frequentar a Igreja sem ouvir as constantes referências a “Ele” e “Pai”, visto que Deus deve estar além do gênero.
Uma reforma da linguagem patriarcal pode abrir as portas para enfrentar outras injustiças sociais. Talvez estejamos testemunhando o começo de uma mudança radical na Igreja.
Mas nesse momento, a luta pela inclusão na Igreja está em frangalhos. Há problemas de racismo institucional, desigualdade de gênero no sacerdócio e, mesmo após anos de discussão, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não é reconhecido.
Dado o histórico da instituição, qualquer mudança radical resultante desse projeto seria um milagre.