“O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, declarou o jurista Carlos Ayres Britto, então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011. Ele foi relator de duas ações que se tornaram históricas, julgadas há exatos 10 anos: a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132.
Em 5 de maio de 2011, o Brasil passou a reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Foi a oficialização de algo que já estava ocorrendo, timidamente.
“Desde 2007, alguns cartórios vinham formalizando a união estável homoafetiva. Em 2011, o STF reconheceu […] o direito básico dos casais do mesmo sexo poderem constituir uma família”, resume Daniel Paes de Almeida, presidente do Colégio Notarial do Brasil (Seção São Paulo).
“Na verdade, a grande mudança consiste no fato de que antes da decisão, alguns juristas entendiam não ser possível a lavratura da escritura, enquanto outros entendiam pela possibilidade. Com a decisão, houve a uniformização do entendimento e todos passaram a lavrar as escrituras homoafetivas”, explica.
Nos últimos 10 anos, foram registradas no brasil 21,6 mil escrituras de uniões estáveis homoafetivas. Em 2010, um ano antes do reconhecimento pelo STF, foram 576 atos do tipo. Em 2020, o número saltou para 2.125.
Cidadania plena
Para quem viveu o antes e o depois, está clara a diferença na qualidade de vida: a formalização da união garante aos casais homoafetivos os mesmos direitos de qualquer família. A técnica de enfermagem Walquiria Aparecida Minghin, de 58 anos, vive com a esposa desde o ano 2000.
“Antes, não podíamos ter o mesmo convênio médico e, em clubes, não era permitido compartilhar a carteirinha”, diz Walquiria.
“Também nos preocupava [antes da formalização da união civil] a segurança que teríamos na eventual falta de uma de nós. Já passamos por muita coisa juntas, muito preconceito”, comenta. As duas vivem em São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais.
Com o reconhecimento da união estável homoafetiva, o Brasil passou a ter precedente normativo para a posterior legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 14 de maio de 2013, a resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça acabou normatizando tal possibilidade de casamento civil.
Diretor-presidente da organização Aliança Nacional LGBTI+, o ativista Toni Reis diz que, com a decisão de 2011, “o STF abriu a porta da cidadania plena para nós. “Hoje podemos casar, adotar, doar sangue, ter respeitada a nossa identidade de gênero”, elenca.
Juntos há 11 anos, o redator publicitário Lucas, de 29 anos, e o administrador Tibério, de 34 anos, decidiram oficializar a união em janeiro de 2019. Casaram-se e somaram os sobrenomes — agora ambos assinam de forma idêntica: Mariano Maciel Baqueiro Miranda Rodrigues. Eles vivem em Salvador.
“O que me preocupou muito foi que fiquei doente duas vezes e tive de fazer uma cirurgia de emergência. Ficava preocupado: será que o Tibério vai poder tomar as decisões por mim?”, lembra Lucas. “Como meu marido, sei que ele jamais seria recusado, por exemplo, em um hospital em caso de internação.”
Ele ressalta ainda que o casamento garantiu a extensão ao cônjuge de benefícios como plano de saúde. E também há o fator aceitação. “Meu marido é de uma família evangélica pentecostal. Só depois do casamento de fato é que eles passaram a me aceitar, a aceitar o fato de que somos casados e que formamos uma família”, diz.
“Casar-se é um posicionamento político”
Algo que pode parecer pequeno aos olhos de quem não vive o preconceito no dia a dia, mas que é celebrado como uma conquista é que, ao equiparar as uniões, a decisão jurídica de 10 anos atrás também impulsionou, aos olhares da sociedade, uma imagem de “naturalidade” aos casais homoafetivos.
O técnico de enfermagem Márcio José de Almeida Horato, de 43 anos, gosta de ressaltar isso. Quando se casou, em dezembro de 2018, em Volta Redonda, eram 26 casais formados por homem e mulher — apenas ele e o noivo eram a exceção homoafetiva. “Mas fomos muito bem recebidos pelos funcionários do cartório e muito bem tratados por todos os outros”, frisa.
Os empreendedores Diego Xavier, de 36 anos, e Murillo Correa Xavier, de 29, se casaram em Curitiba no início deste ano. “O ato garante o ajuste das coisas burocráticas, por estar com o nome junto. Mas também entendemos como algo para inspirar outras pessoas. Há tantos casais gays que moram juntos e não casaram no papel”, comenta Diego.
“Já vimos casos em que o marido morreu e quem ficou não teve direito a nada. Casar-se é um posicionamento político. Temos todos os direitos, graças a muita gente que lutou por isso e permite que hoje possamos desfrutar de tais direitos.”