O governo de São Paulo abriu o debate sobre a possibilidade de aplicar uma dose única da Coronavac, vacina da Covid-19 de origem chinesa que será fabricada pelo Instituto Butantan e que terá seu pedido de registro feito à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na quinta (7).
A hipótese começou a ser discutida no Centro de Contingência do Coronavírus, órgão criado em fevereiro do ano passado e que reúne 20 especialistas do setor público e privado.
Ela depende, contudo, de determinar exatamente a eficácia do fármaco entre as duas doses previstas, com espaço de 14 dias, para estimular uma resposta imune contra o novo coronavírus.
Se a Coronavac tiver uma cobertura considerada muito boa já na primeira dose, a tendência é repetir a experiência de países europeus e ampliar ao máximo a base de pessoas a serem vacinadas, eliminando a segunda inoculação.
Por essa lógica, a pandemia poderia ser mitigada mais rapidamente, ao menos do ponto de vista de afogamento do serviço de saúde. Até onde se sabe, as vacinas disponíveis no mercado não impedem a transmissão do vírus, contudo, mas evitam que a pessoa adoeça.
Além disso, a ideia trata de um problema já visível na Europa: a falta de vacinas. Mas tal estratégia não é consensual. Nos Estados Unidos, a vacinação tem seguido o rito das duas doses, focando em grupos prioritários, por exemplo.
A eficácia da Coronavac tornou-se uma polêmica após dois adiamentos feitos pelo governo paulista sobre os dados do seu estudo de fase 3, a final, da vacina. Com 13 mil profissionais de saúde inoculados, metade com o fármaco e o resto, com um placebo, é o maior do gênero fora da China.
O governo João Doria (PSDB) disse que divulgaria os dados preliminares da fase 3 em 15 de dezembro, mas na véspera mudou de tática porque a alta circulação do vírus no Brasil permitiu chegar a um patamar de voluntários infectados suficiente para fazer o estudo para pedir um registro definitivo.
Como a Folha mostrou, no plano de Doria, em luta encarniçada com seu rival Jair Bolsonaro acerca do manejo da pandemia e, agora, da vacinação, isso permitiria um pedido de registro simultâneo na Anvisa e na sua similar em Pequim.
Como a expectativa era de que os chineses aprovassem a vacina em três dias, a ideia seria usar esse dado para pressionar a Anvisa, até porque uma lei do início da pandemia obriga a autorização automática de produtos que tenham sido chancelados por agências da China, EUA, União Europeia ou Japão.
Isso forçou o governo federal a se mexer, e as conversas travadas entre estado, Anvisa e Ministério da Saúde começaram a ficar mais fluidas.
A carta das 72 horas segue na mesa, mas a aposta dos negociadores é de uma solução negociada, até porque a Saúde mudou de posição e disse que quer incorporar a Coronavac ao Plano Nacional de Imunização.
A nova data para o estudo final seria 23 de dezembro, mas foi novamente adiada, conforme revelou a Folha. O motivo: a Sinovac viu discrepâncias entre os resultados de eficácia no Brasil e na fase 3 que conduz em locais como Turquia e Indonésia.
Os dados não são conhecidos, mas pessoas com acesso às conversas sugerem que a eficácia no exterior ficou algo acima da brasileira porque o estudo aqui foi feito com pessoas mais expostas, só profissionais de saúde, enquanto lá fora os grupos representavam a população em geral.
Por isso, a Sinovac usou uma cláusula de seu contrato e pediu para São Paulo segurar a informação novamente, para equalizar os dados. Há geopolítica nisso: com vacinas ocidentais com eficácia acima de 90%, os chineses querem apresentar um produto padronizado no mercado mundial.
Mas o desgaste acabou na conta de São Paulo, que de todo modo afirma que a vacina tem mais do que os 50% necessários de eficácia para poder ser utilizada.
Agora, na quinta, ainda não se sabe quais números serão apresentados. É mais provável que sejam os dados brasileiros para um pedido emergencial à Anvisa, que tem 10 dias para responder, do que a adoção da tática anterior.
Há questões adicionais. O plano estadual lançado por Doria em dezembro prevê um escalonamento para vacinar, a partir de 25 de janeiro, 9 milhões de pessoas —profissionais de saúde, grupos vulneráveis e quem tem mais de 60 anos no estado.
Mas o programa, que em sua primeira fase anunciada se estendia até o fim de março, terá de ser todo alterado se houver apenas uma dose da Coronavac.
Nada disso conta, claro, com eventuais surpresas desagradáveis, como a necessidade de mudar as fórmulas de vacina caso cepas mutantes do coronavírus se tornem prevalentes.
Esse risco epidemiológico ocorre agora no Reino Unido, embora com a suposição de que os imunizantes atuais dão conta, mas há notícias preocupantes acerca de uma variante sul-africana que não seria coberta por eles.
Noves fora a data depender do imbróglio da autorização, uma outra questão atormenta o governo paulista.
Se a União assumir a Coronavac, em tese irá pagar por ela e terá primazia em determinar seu uso pelo país. A ideia de que São Paulo assumiria o protagonismo nacional na vacinação ficaria prejudicada em termos de imagem.
Setores técnicos do governo estadual estão estudando a questão, para saber exatamente se é possível haver planos simultâneos de imunização sem prejuízo à organização. Em favor do cronograma de Doria há o fato de que não existe nenhum contrato ainda entre governo federal e Butantan.
Segundo o planejamento paulista, haveria 46 milhões de doses da Coronavac, entre doses prontas e formuladas no Butantan, neste mês. Na virada do ano, eram 11 milhões.
Bolsonaro, que sempre que pode degrada o debate sobre vacinas e segue minimizando a pandemia, parece ter entendido o valor político de ter a primeira inoculação feita sob os auspícios do Ministério da Saúde e agora diz que quer um imunizante rapidamente.