Pode parecer algo muito distante, já que nos últimos dias não faltaram notícias de demissões de funcionários e redução dos salários dos jogadores de grandes clubes, em meio à pandemia do novo coronavírus (covid-19), que causou a paralisação dos campeonatos de futebol no Brasil e no mundo. No entanto, um relatório divulgado recentemente pela Sports Value, empresa especializada em marketing esportivo, mostra que ano passado o cenáro do futebol estava bem diferente. Faz apenas quatro meses que a temporada 2019 chegou ao fim. E, de acordo com o levantamento realizado com base nos dados dos 16 maiores clubes nacionais, 2019 foi mesmo um ano e tanto. O mercado do futebol no país movimentou R$ 6,8 bilhões, um valor quase 18% maior do que o registrado em 2018 (R$ 5,7 bilhões).
O consultor de finanças e gestão do esporte, César Grafietti, destaca que não se deve creditar os problemas financeiros de alguns clubes ao surgimento da pandemia de covid-19. “É importante deixar claro que a grande maioria dos clubes não entrou em dificuldade por conta da covid-19. Ela apenas acelerou um processo que já estava em curso. Havia pelo menos uns dez clubes da Série A
Grafietti cita como exemplo o Santos, cujos jogadores demonstraram insatisfação na redes sociais, pela redução de 70% dos vencimentos, sem acordo de ambas as partes. Alguns chegaram a publicar em seus perfis pessoais uma nota do Sindicato dos Atletas de Futebol do Município de São Paulo (SIAFMSP) que julga “inadmissível” que os atletas passem por essa situação.
“Esta é uma questão interessante. Muitos clubes já não pagavam salários, atrasavam constantemente, não recolhiam os encargos. Não sei afirmar se é o caso do Santos, mas esta é uma prática comum. Reduzir salários é algo até estranho para muitos, pois já não recebem como deveriam. Mas voltando ao tema, os custos com pessoal representam cerca de 60% das receitas, então cortar 70% ajuda muito, mas me parece irreal. Na Europa cortaram entre 25% e 50%, a depender do clube, mas são clubes que pagam em dia. No Brasil me parece uma possibilidade para poucos”, compara Grafietti.
O sócio-diretor da Sports Value,Amir Somoggi, faz uma leitura diferente dos números apresentados na pesquisa. “Alguns clubes em particular contribuíram muito para esse incremento de 18% em um ano. O Flamengo, não só por conta das transferências [de jogadores], que pesaram muito, mas também pelo desempenho de bilheteria. O plano de ‘sócio torcedor’ e premiações. O Internacional, também. Esse, sim, muito focado na questão das transferências. O Santos, totalmente, por causa das transferências. E o Athletico-PR por ter ido bem nos torneios, e pelas questões das transferências. Só os dois primeiros fizeram mais de R$ 500 milhões em transferências. É um volume muito expressivo, como nunca se fez. (…)E a grande questão que pesou foi o valor de premiações. O trio Flamengo, Athletico-PR e Inter, com o dólar cotado em quase quatro reais para um dólar, teve um salto grande. Esse foi um grande fator”, esclarece.
Receita total dos clubes
O principal destaque da temporada 2019, segundo o levantamento, foi o Flamengo. Com as receitas passando de R$ 543 milhões, em 2018, para R$ 950 milhões em 2019 (alta de 75%, atingindo um valor recorde nas Américas). No Athletico-PR, os valores dobraram de um ano para outro (saindo de R$ 195 milhões para R$ 390 milhões). O Furacão, de acordo a pesquisa, teve superávit (diferença positiva entre receita e despesa) de R$ 63 milhões e lucro acumulado de R$ 189 milhões nos últimos cinco anos. Os ativos (bens, valores, créditos) alcançaram R$ 904 milhões e o patrimônio líquido (riqueza de uma empresa,subtraída as obrigações) é de R$ 488 milhões.
O Grêmio também teve faturamento importante em 2019.. Foram R$ 440 milhões, sendo 4% a maior que o registrado na temporada anterior. Outros clubes que contribuíram para a alta na movimentação de recursos no mercado da bola ano passado foram Santos, Athético-PR e Internacional, cujas receitas dispararam.
Custos com futebol
Os custos dos grandes clubes de futebol do país atingiram o maior valor da história. Foram gastos R$ 4,7 bilhões no ano passado, 23% a mais do que os custos registrados em 2018 (R$ 3,8 bilhões).
Entre os dez primeiros da lista, dois clubes apresentaram uma baixa. O Fluminense com 12% menos (R$ 147,3 milhões em 2019 e R$ 167,6 em 2018). O Cruzeiro teve redução de 6%, totalizando R$ 306 milhões na temporada passada.. Do outro lado, alguns clubes apresentaram aumento significativo nos custos. O Flamengo (76% a mais que em 2018), Athletico/PR (+71%), Santos (+39%), São Paulo (+39%) e Internacional (+36%).
Superávits, déficits e dívidas
Os 16 clubes analisados em 2019 apresentaram déficits (saldo negativo) de R$ 257 milhões. No ano anterior, no entanto, registraram superávit de R$ 82 milhões. Vale destacar o desempenho impressionante de Athletico-PR e Flamengo, que juntos somaram R$ 125 milhões de superávit no ano passado.
Santos e Grêmio encerraram com superávits de R$ 23,5 milhões e R$ 22,2 milhões, respectivamente. Destaques negativos para os pesados déficits de São Paulo, e Corinthians, e ainda de Cruzeiro e Botafogo. Já as dívidas somadas se aproximaram de R$ 8 bilhões (veja os dados completos nos gráficos abaixo).
“Os déficits foram os maiores da história, caso de São Paulo e Corinthians. O próprio Cruzeiro também foi muito mal. Tudo isso fez com que a dívida da elite do futebol brasileiro atingisse, pela primeira na história, a marca de R$ 8 bilhões. Uma situação bastante complicada que envolve valores não quitados com bancos, jogadores e operações da atividade dos clubes”, lamenta Amir Somoggi.
Pandemia de covid-19
Para Somoggi, a análise do futebol brasileiro nos dias atuais não pode ser dissociada da crise global gerada pela pandemia do novo coronavírus. “Existe uma perda gigante com as bilheterias e os programas de sócio torcedor. E a questão dos patrocinadores, que não estava tão clara há alguns meses, agora já ficou bem mais fácil de ser definida. Muitas empresas estão retirando verbas de patrocínio do futebol. É possível calcular, no momento, que as perdas com a covid-19 devem ser de aproximadamente 25% (algo em torno de R$ 1,3 bilhão). Como as transferências de atletas, que vinham batendo recordes nas últimas temporadas, devem cair de forma drástica nesse ano. Assim não podemos descartar uma perda total superior aos R$ 2 bilhões. Em termos financeiros, a previsão é que o mercado de futebol retorne aos patamares anteriores de 2017 (na época os valores giravam em torno de R$ 5,5 bilhões). É provável que voltemos quatro anos por causa da crise”, projetou o consultor.
César Grafietti também não visualiza um cenário otimista. “É difícil falar em tamanho das perdas, mas fica bastante claro que bilheteria e [o programa] “sócio torcedor” tendem a sofrer. Se houver Campeonato Brasileiro, as receitas da TV estarão salvas. As vendas de atletas, apesar dos valores serem elevados, quando somamos todos os clubes, vinham sendo cada vez mais pontuais. Logo no início desse ano, antes da crise, tivemos pelo menos duas vendas importantes, como Antony do São Paulo e Pedrinho do Corinthians. De qualquer forma, minha estimativa é de que as perdas fiquem em torno de R$ 1,4 bi, desde que a TV seja paga completamente”, analisa.
Grêmio, um caso de sucesso
Em termos de resultados esportivos, o Grêmio é um dos exemplos de maior sucesso em nível nacional. Depois de um jejum de 15 anos em relação a conquistas expressivas: depois da primeira Copa do Brasil em 2001, o time gaúcho conquistou o bicampeonato no ano passado. Essa volta dos bons resultados nem ocorreu por acaso. Em conversa com o próprio Amir Somoggi, no canal da Sports Value no Youtube, Carlos Amodeo, diretor-executivo do Tricolor gaúcho desde 2017, explicou que o clube passou por uma transformação. “A decisão estratégica foi iniciar uma reestruturação administrativa financeira e de gestão do clube. Tratando o orçamento com muito mais responsabilidade com um investimento muito forte nas categorias de base. Em 2016, começaram a chegar os resultados dentro de campo [o Grêmio foi campeão da Copa do Brasil naquela temporada; em 2017, conquistou a Copa Libertadores; e no ano seguinte retomou a hegemonia do futebol estadual,com o bicampeonato gaúcho)”, relatou orgulhoso o dirigente.
O jornalista Eduardo Dias, idealizador da empresa Footure (produção de podcasts e conteúdo analítico sobre futebol) acredita que o clube gaúcho está antecipando o cenário que o futebol brasileiro viverá na “Era Pós-Covid”. “Na próxima década, passaremos por mudanças nunca vistas na história do futebol. Quem vai tirar os clubes da crise pós-covid não serão as mesmas pessoas que os trouxeram até aqui. A gente está prestes a vivenciar a maior mudança de realidade do futebol brasileiro, talvez desde 1971, quando foi implantado o Campeonato Brasileiro”, considera.
Para Dias, o mercado mundial de futebol tem padrão de compras e quem já entendeu isso saiu na frente. “É importante saber que tipo de atletas o mercado compra. O Grêmio conseguiu fazer isso muito bem. A equipe está conectada. A base é uma fábrica de atletas não só para a equipe principal, mas para importantes negociações”. E acrescenta: “os grandes clubes brasileiros são associações sem fins lucrativos. Eu não acredito que esses clubes migrem para modelos de clubes-empresas. Mas me parece que a solução para a questão financeira dos clubes não passa pela modelagem jurídica. Passa pela prática de gestão, pela consciência estratégica de um modelo de gestão e governança adotado pelo clube”, conclui.
Flamengo, exemplo de organização das finanças
Em outro vídeo, Somoggi reuniu os dois ex-dirigentes de finanças do Flamengo. Cláudio Pracownik, chefe da pasta entre 2015 e 2018, resumiu as ações dos últimos anos. “O Flamengo passou por ciclos. O primeiro momento foi para decidir como iríamos pagar as refeições do dia seguinte. Não conseguíamos parcelar nada, não tínhamos nenhum crédito. Mas nunca perdemos a visão que tínhamos do tipo de Flamengo que a gente queria para o futuro. Depois passamos para o período de “manutenção”, que foi quando eu entrei na pasta. E, no final de 2018, passamos para a fase dos investimentos”, detalha.
Já Wallim Vasconcelos, vice-diretor de finanças em 2019, também recorda do início de 2010, quando o Rubro-Negro lidava com a falta de credibilidade “A reputação das pessoas que entraram no clube na época ajudou muito para começarmos a renegociar os mais variados tipos de débitos em atraso. A gente conseguiu pagar tudo aquilo que foi acordado. Nunca atrasamos um salário desde janeiro de 2013. Sempre cumprimos tudo o que foi prometido”, recorda orgulhoso.