A análise detalhada das prestações de contas entregues à Justiça Eleitoral mostra que no ano passado vários partidos mantiveram a prática de usar verba pública não só para remunerar seus dirigentes, mas também empresas ligadas a eles, amigos, parentes e políticos que fracassaram nas urnas.
Ao todo, R$ 937 milhões foram gastos em 2019, sendo a maior parte dinheiro público —essa fatia, em torno de 90% do total, foi distribuída às legendas na proporção do desempenho que elas tiveram nas últimas eleições para deputado federal.
Entre os exemplos está o rio-pretense Ovasco Resende, ex-presidente do PRP, que se fundiu ao Patriota. Ele chegou a acumular salário dos dois partidos no mês de junho do ano passado, somando cerca de R$ 60 mil de vencimentos. Ele alega que recebeu em duplicidade pois no sistema do PRP a remuneração paga era relativa ao mês anterior. No Patriota, o pagamento é feito no próprio mês.
Responsável por uma das maiores cotas, o PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente da República, tem na sua lista de pagamentos funcionárias indiciadas pela Polícia Federal sob suspeita de terem sido candidatas laranja nas eleições de 2018, citados na investigação das “rachadinhas” da Assembleia do Rio de Janeiro e até um amigo de Bolsonaro, que nunca exerceu atividade política partidária.
O PSL, comandado pelo deputado federal Luciano Bivar (PE), também pagou mais de R$ 11 mil por mês à mulher do deputado Nereu Crispim (RS), Carolina Lomba. Bolsonaro abandonou a sigla no final do ano passado e tenta criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil.
Após o partido multiplicar o recebimento de verbas devido ao sucesso eleitoral de Bolsonaro, houve registro de gastos com carros, restaurante e mobiliário de luxo, entre outras despesas.
O PT, maior partido de oposição a Bolsonaro, é o que mais recebe dinheiro do fundo pelo fato de ter obtido o maior número de votos nas eleições para a Câmara em 2018. Um dos maiores fornecedores contratados pelo partido é a Urissanê Comunicação, que recebeu R$ 5,5 milhões em 2019.
A empresa é de Otavio Augusto Antunes da Silva, que disputou eleições pelo partido em 2000 e 2004 e foi assessor parlamentar da sigla na Assembleia Legislativa de São Paulo de 2005 a 2016.
Quando se direciona a lupa para partidos médios e menores, observa-se prática similar ou em grau até superior.
O DC, do ex-candidato à Presidência José Maria Eymael, pagou salário não só a ele (R$ 109 mil em todo o ano), como direcionou R$ 45 mil ao Centro Automotivo Caminho Certo, que tem ele e familiares como sócios.
Já o PTB de Roberto Jefferson, um dos mais entusiastas apoiadores de Bolsonaro atualmente, destinou no ano passado cerca de R$ 300 mil ao dirigente, a título de prestação de serviços técnicos e profissionais.
O PROS, que é alvo de investigação sob suspeita de desvio de recursos, também é um exemplo de mistura de público e privado. O fundador da sigla, Eurípedes Jr., parentes, amigos e até o piloto do helicóptero que a legenda comprou com verba do fundo partidário ganham salário do partido.
Há casos de duas mulheres de políticos da legenda recebendo R$ 5.000 por mês, além do caso da ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho. Ela, que hoje tem uma loja de doces caseiros, figura com salário de R$ 8.500 do partido.
O Republicanos de São Paulo contratou por R$ 133 mil a empresa Iave Assessoria, pertencente a um filiado à sigla.
O PL pagou R$ 11 mil por mês à esposa do deputado estadual André do Prado (SP), Clarisse Johara.
No Podemos, o filho do deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) ganha R$ 11 mil mensais da legenda. Bacelar é aliado do partido no estado. Familiares de dirigentes da sigla também estão na folha de pagamento.
O PSC tem a mulher do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, uma mãe de deputado e alguns pastores na folha de pagamento. Alvo da Polícia Federal, a primeira-dama do Rio, Helena Witzel, recebeu desde janeiro de 2019 mais de R$ 350 mil brutos do PSC, a título de salário por integrar a equipe jurídica da legenda.
Outra prática comum nos 33 partidos brasileiros é alojar em seus quadros, com remuneração mensal, políticos que fracassaram nas urnas ou deixaram de ocupar algum cargo público.
O oposicionista PSB tem na sua folha salarial os ex-governadores Márcio França (SP) e Ricardo Coutinho (PB) e o ex-deputado federal Beto Albuquerque (RS), todos com salários superiores a R$ 20 mil por mês.
O PDT contratou o escritório de advocacia de seu presidenciável, Ciro Gomes. Foram R$ 45 mil pagos em 2019.
Os dados se referem às esferas nacional, estadual e municipal das legendas e foram coletados e compilados pela ONG Transparência Partidária, com base na prestação de contas de 2019 entregue pelas legendas ao Tribunal Superior Eleitoral. Pela lei, elas têm até junho do ano seguinte para entregar a prestação anual de contas.
Depois das transferências obrigatórias para as fundações partidárias e as instâncias estaduais e municipais, o gasto com pessoal ocupou a maior fatia, com 14%.
“O levantamento [relativo a 2019] identificou uma série de situações que merecem análises mais aprofundadas quanto à regularidade e à legitimidade desses gastos, mas que ainda esbarram em algumas deficiências do ponto de vista da transparência e do controle social”, afirma Marcelo Issa, diretor-executivo da Transparência Partidária.
Em relatório divulgado pela organização relativo ao uso do fundo partidário em 2017, a entidade detectou “dezenas de casos de contratação de empresas das quais dirigentes partidários das próprias legendas contratantes são sócios ou proprietários”, no valor de ao menos R$ 4,5 milhões.
O relatório apontou também que doadores receberam de volta mais do que o dobro do valor que repassaram às legendas, por meio de contratos com empresas das quais eram sócios ou proprietários.
OUTRO LADO
Em nota, o PSL afirmou que Carolina Lompa é secretária-executiva do PSL Mulher e atua diariamente dentro do partido. O deputado Nereu Crispim não se manifestou.
O PT afirmou que investe recursos na comunicação “por ter acesso restrito, quando não censurado” à mídia e que não há impedimento para a contratação da empresa de um filiado. “Se o fosse, seria uma discriminação autoritária.”
O Republicanos de São Paulo afirmou que a empresa contratada prestou serviços de contabilidade, consultoria e gestão de RH, em valores dentro dos padrões de mercado. “Já em relação ao fato da prestação de serviço estar relacionada com um de nossos filiados, isso apenas indica que há uma confiança mútua na relação entre as partes.”
O PDT disse que Ciro Gomes é advogado com vasto conhecimento e vice-presidente do partido. “Como tal, tem feito inúmeras peças jurídicas, como a que o PDT deu entrada no Tribunal Penal Internacional, acionando a corte pela forma como Bolsonaro vem enfrentando a pandemia, entre outras”.
O PTB afirmou que o valor total recebido por Roberto Jefferson em 2019 “é proveniente de suas competências como presidente nacional”, conforme definido no estatuto da sigla.
O PL afirmou que a esposa do parlamentar trabalha na legenda “onde, sem qualquer óbice, desempenha trabalho regular, nos termos da lei”. A Folha não conseguiu contato com o parlamentar ou com a funcionária da legenda.
O presidente do Patriota, Adilson Barroso, afirmou que o irmão Aguinaldo Barroso é tesoureiro nacional da legenda responsável por assinar “todos os cheques do partido” e que seu salário —cerca de R$ 8.000— está dentro da lei e é menor do que a média do mercado.
O Podemos afirmou, em nota, que o advogado João Claudio Bacelar Batista responde por três áreas da legenda na Bahia: coordenação administrativa, jurídica e articulação política, junto aos 417 municípios.
Em nota, a assessoria do PROS afirma que o piloto de helicóptero recebe remuneração dentro da categoria e que as funcionárias que são mulheres de políticos da legenda exercem funções administrativas dentro do que determina a lei.
Sobre os pagamentos à ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho, a legenda afirma que ela exerce um importante papel na organização partidária na “formação de quadros e adesão de filiados”.
PSC e o PSB não se manifestaram. A Folha não conseguiu falar com a assessoria do DC.
FUNDO PARTIDÁRIO E FUNDO ELEITORAL
Fundo partidário
É distribuído anualmente aos partidos que cumpriram as regras da chamada cláusula de barreira (desempenho mínimo nas eleições). Em 2020, 23 das 33 legendas estão aptas a recebê-lo. É dividido na proporção dos votos que as legendas obtiveram nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados. O valor a ser rateado em 2020 é de R$ 959 milhões
Fundo eleitoral
Criado em 2017, destina dinheiro a todos os partidos, de dois em dois anos, para uso na campanha eleitoral daquele ano. É divido com base na combinação de vários critérios, mas também privilegia legendas com melhor desempenho nas últimas eleições. O valor a ser rateado em 2020 é de R$ 2,035 bilhões
ALGUNS GASTOS COM DIRIGENTES, ESPOSA, PARENTES E AMIGOS DE POLÍTICOS
PSL
Ex-assessores do presidente da sigla, deputado Luciano Bivar (PE), e da família de Jair Bolsonaro (que se elegeu presidente da República pela legenda em 2018) receberam salário do partido. Entre eles, citados na investigação das “rachadinhas” da Assembleia do Rio e até um amigo de Jair Bolsonaro (ex-PSL, hoje sem partido), que nunca exerceu atividade política partidária. O PSL também pagou mais de R$ 11 mil por mês à esposa do deputado Nereu Crispim (RS), Carolina Lomba.
Patriota
Tem dirigentes recebendo R$ 26 mil por mês e parentes do presidente Adilson Barroso na lista de pagamentos. O ex-presidente do PRP (Ovasco Resende), que se fundiu ao Patriota, virou vice da legenda. Durante a fusão, ele chegou a acumular salário dos dois partidos no mês de junho, somando cerca de R$ 60 mil de vencimentos.
PL
O partido paga R$ 11 mil por mês à esposa do deputado André do Prado (SP).
Podemos
O filho do deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) ganha R$ 11 mil mensais da legenda. Bacelar é aliado do partido no estado. Familiares de dirigentes também estão na folha de pagamento.
PROS
O fundador da sigla, Eurípedes Jr., parentes, amigos e até o piloto do helicóptero ganham salário do partido. Há casos de duas esposas de políticos da legenda recebendo R$ 5.000 por mês, além da ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho. Ela, que hoje tem uma loja de doces caseiros, tem salário de R$ 8.500 do partido.
PSC
A mulher do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, uma mãe de deputado e alguns pastores estão na folha de pagamento.
PSB
Virou cabide de derrotados ou políticos sem mandato. Márcio França (SP), Ricardo Coutinho (PB) e Beto Albuquerque (RS) têm salários superiores a R$ 20 mil por mês.
PTB
Presidente da sigla, o ex-deputado Roberto Jefferson, hoje um dos apoiadores mais entusiastas do presidente Jair Bolsonaro, recebeu em 2019 cerca de R$ 300 mil a título de prestação de serviços técnicos e profissionais à legenda.