Um vídeo obtido pelo g1 mostra funcionários de um mercado no Centro de Itanhaém, no litoral de São Paulo, abrindo embalagens de carne à vácuo, colocando-as em um tanque e jogando cloro.
As imagens foram gravadas após a auxiliar de enfermagem Kelly Beck Tofteraa, de 36 anos, levar ao estabelecimento uma peça de carne com larvas que havia comprado no local. O procedimento é considerado de praxe quando há a intenção de torná-lo impróprio para consumo, segundo a médica veterinária ouvida pela reportagem.
Nas imagens, o pai de Kelly diz ao funcionário que quer ver eles jogarem cloro nas carnes que estavam ali para que elas não fossem mais vendidas. “Não vou fazer B.O [boletim de ocorrência], não vou fazer nada, mas quero ver isso aí” (veja o vídeo acima). Kelly confirmou ao g1 que fez o pedido para “ter certeza de que eles não venderiam as carnes para mais ninguém”.
No entanto, o médico veterinário pós-graduado em Vigilância Sanitária e Controle da Qualidade dos Alimentos Paulo Alberto Torres Globo disse que o mercado não tem obrigação de jogar cloro nas carnes porque a cliente solicitou.
“A obrigatoriedade do supermercado é ressarcir ou trocar o produto. Ela não tem poder de obrigar e eles não teriam obrigação de fazer isso. Se foi em uma peça à vácuo, eles teriam que ter entrado em contato com o fornecedor para identificar como essa larva foi parar lá dentro”.
Em nota, o Mercado Extra disse que, em relação ao descarte da carne, que a forma que foi feito o procedimento, apesar de ter sido realizado atendendo a uma solicitação do cliente, não condiz com as políticas e diretrizes de segurança alimentar da companhia. O processo correto foi reforçado junto ao time da loja em questão.
Especialistas explicam o procedimento
Segundo a médica veterinária e pesquisadora na área de Inspeção de Alimentos na Unimes Daniele Raimundo, o estabelecimento não colocou cloro para reutilizar o produto, mas para inutilizá-lo.
“Isso é de praxe. É um protocolo que a Vigilância Sanitária usa para descaracterizar o produto. Eles cortam a embalagem, jogam cloro, iodo para mudar a cor do alimento, estragar e induzir para a deterioração por algum agente químico para certificar que nenhuma outra pessoa consiga pegar aquele alimento e utilizá-lo”, disse a pesquisadora de Inspeção de Alimentos.
A carne que teve contato com o cloro pode levar a uma intoxicação. “Em hipótese alguma essa carne que teve contato com o cloro pode ser vendida novamente, reembalada e comercializada. A cor da carne vai estar diferente, a textura e o cheiro [também], então esse procedimento foi adequado”.
De acordo com Daniela, o aparecimento de larvas na carne indica que não houve o controle higiênico-sanitário adequado. “Ou seja, essa carne pode ter sido embalada de uma forma incorreta, não ficou sob refrigeração da forma ideal ou teve manipulação inadequada. As moscas pousaram, tiveram acesso livre a esse alimento, pousaram nessa carne e liberaram essas larvas”.
Em relação ao descarte de carnes após apenas uma das peças ter apresentado larvas, a especialista disse que, geralmente, o comércio compra carnes em lotes e presume-se que as outras também estariam com alteração. “Não posso afirmar que as outras tinham, porém, elas vieram do mesmo local de origem, tiveram a mesma manipulação, o mesmo armazenamento, então a gente presume que as outras carnes que tiveram essa origem estão apresentando essa alteração também”.
O especialista em Vigilância Sanitária afirmou que o supermercado pode fazer por conta própria a inutilização de um produto, sem a necessidade de notificar nenhum órgão competente. “A grande maioria dos supermercados tem RTs, que são responsáveis técnicos na área de alimentos, não têm a obrigatoriedade de ser médico veterinário, pode ser engenheiro de alimentos, nutrição e outras áreas relacionadas à saúde, então esse profissional é gabaritado e pode estar procedendo com essa inutilização de produtos que possam causar risco ao consumidor”.
Para ele, a armazenagem foi fora do padrão, que é seguir as instruções do fabricante que constam na embalagem do produto. “Se eles estavam dentro do padrão de armazenagem, de temperatura e dentro da validade, o erro veio do fornecedor. Se o supermercado aceitou realmente esse pedido dela para que todo o lote fosse inutilizado e descartado, eles deveriam estar fazendo algo fora do padrão, pois é um pedido sem cabimento. Se eu fosse RT do mercado não acataria e falaria que ela poderia fazer o B.O se quisesse”.
O profissional explicou que o processo de inutilização é realizado quando os produtos estão impróprios para consumo. “Isso é uma coisa rotineira e importante para que esse alimento não seja reutilizado, e até pensando em um aterro sanitário, por exemplo, que infelizmente sabemos que as pessoas se alimentam de restos achados lá”.
Para inutilizar o produto, Globo disse que a melhor forma é retirar a carne por completo da embalagem e jogar o produto químico diretamente no alimento, e que o cloro não muda a coloração da carne, por isso, tinturas químicas seriam mais recomendadas. “Se possível, produtos que tenham cor para ficar visível também, mistura de tintura de iodo, azul de metileno, entre outros corantes químicos. O cloro deixa o odor forte, serve também, mas a mudança é quase imperceptível. Se eles realmente jogaram cloro, é impossível reutilizar, deixa cheiro característico de cloro”.
A nutricionista e professora de Higiene e Controle de Qualidade de Alimentos da UniSantos Rosângela Schattan afirma que a carne disponível para consumo não pode ter larvas. “Não se coloca cloro em carne [para consumo], de maneira nenhuma. Provavelmente, passou do prazo de validade, ou foi armazenada de forma incorreta, ou já veio contaminada e ali surgiu a larva”.
“Às vezes não tem cheiro porque não está em estado de putrefação, mas ela tem uma contaminação que não deveria, tem alguma coisa que entrou nela, que cresceu. Essa carne teria que ter o lote dela totalmente desprezado ou devolvido ao frigorífico, eles têm que mandar essa carne para análise. O ideal é chamar a Vigilância Sanitária”, disse Rosângela.
Em nota, a prefeitura de Itanhaém informou que a Vigilância Sanitária não recebeu nenhuma denúncia referente ao caso e que, quando é realizada uma denúncia, é solicitado informações relevantes para averiguação, como, por exemplo, lote do produto, validade e marca para possível coleta de amostra a ser enviada ao Instituto Adolfo Lutz.
Ainda de acordo com a prefeitura, como trata-se de produto lacrado e embalado pelo fornecedor, a coleta de amostra do mesmo produto faz parte dos procedimentos. A equipe irá até o local para verificar o armazenamento dos produtos e se a temperatura das câmeras estão adequadas, sem as informações adicionais a coleta de amostra não poderá ser realizada.
Entenda o caso
Kelly Beck Tofteraa teve uma surpresa desagradável ao encontrar larvas de mocas em uma peça de carne que foi comprada embalada à vácuo no Mercado Extra, no Centro, em Itanhaém. Ao g1, ela disse que antes de perceber os bichos, ela já havia trocado uma peça de carne que estava com cheiro podre. O mercado informou ter trocado o produto imediatamente, e que o item estava dentro da validade.
A reportagem recebeu um vídeo de Kelly, em que ela e os familiares aparecem revoltados assim que encontraram larvas na carne durante o churrasco .