Após uma votação histórica no Senado francês, que autorizou a inscrição da “liberdade garantida” às mulheres do país a recorrerem ao aborto, o Palácio de Versalhes acolhe nesta tarde uma votação que deve bater o martelo e tornar o direito irreversível. O Congresso extraordinário reunirá membros das duas câmaras do Parlamento, encerrando um longo processo legislativo que teve início com uma promessa do presidente Emmanuel Macron.
Para que o aborto seja inscrito na Constituição francesa, será necessário o aval de 60% dos legisladores presentes, o que deve ocorrer com folga. Entre os 925 deputados e senadores francesas, 760 já adiantaram que votarão a favor da constitucionalização da interrupção voluntária da gravidez ou o IVG, como a prática é chamada da França.
Na França, o aborto foi descriminalizado em 1975, graças ao combate da ministra francesa Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. Em 2022, o prazo máximo para a realização do procedimento aumentou para 14 semanas.
A mudança não alterou o número de gestações interrompidas, como alegavam conservadores. Há cerca de duas décadas, o número se mantém estável: cerca de 230 mil abortos voluntários são realizados por ano no país.
Temor de um retrocesso
O cancelamento do decreto Roe vs. Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 2022 suscitou o temor de que um retrocesso pudesse ameaçar a Lei Veil na França. Após a mobilização de movimentos feministas em todo o país, o presidente francês se comprometeu a liderar a iniciativa de constitucionalizar o aborto no país.
No entanto, a iniciativa encontrou diversos obstáculos, como a recusa da inscrição na Constituição do termo “direito ao aborto” que deu lugar à “liberdade garantida” às mulheres que desejarem recorrer à prática. Vários parlamentares, entre eles o próprio presidente do Senado, Gérard Larcher, também se manifestaram contra o projeto por acreditarem que a Lei Veil não estava ameaçada.
Embora em torno de 80% dos franceses apoiem a iniciativa, segundo pesquisas, bispos expressaram “tristeza” com a decisão, assim como grupos conservadores. A organização Marcha pela Vida convocou uma manifestação nesta tarde em Versalhes, “para defender a vida das crianças que ainda não nasceram e todas as vítimas do aborto”.
Reforço dos direitos das mulheres
A constitucionalização do aborto na França é uma vitória das mulheres, comemora a edição desta segunda-feira do jornal Libération. “Mulheres de todos os horizontes e de todas as gerações, convencidas que seu combate vai no sentido da história, um caso de bom senso e evolução da sociedade”, afirma o editorial do diário.
A iniciativa também ampliará os direitos reprodutivos das mulheres, como recurso à prática nas zonas rurais, onde a realização do procedimento ainda é “bastante difícil”, segundo a deputada centrista Éleonore Caroit. Para ela, a iniciativa liderada por Macron permitirá “reforçar o acesso ao IVG nesses lugares”.
A inscrição do aborto na Constituição francesa é saudada por movimentos feministas no mundo inteiro e também tem o poder de influenciar países onde a interrupção da gravidez é proibida ou autorizada apenas em casos específicos, como o Brasil.
Em entrevista à RFI, Sonia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e membro da coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres, afirma que a proteção do direito ao aborto na Constituição francesa ajuda a avançar o debate sobre a questão no Brasil.
“A França dar esse passo é bastante fundamental; inspira os movimentos no Brasil e na América Latina”, avalia. “Quando esses avanços acontecem em outros países, a sociedade é fortalecida, os movimentos são fortalecidos e inspirados por esta luta, eles veem que é possível vencer”, reitera.
Brasil vive “o oposto” da França
A militante lamenta que o Brasil seja palco atualmente do “oposto do que se vive na França”. Sonia lembra que, na semana passada, o Ministério da Saúde recuou no cancelamento do prazo determinado pelo governo, anterior, de Jair Bolsonaro, de 21 semanas e seis dias de gravidez para a realização de abortos em casos considerados legais no país: estupro, risco da morte da gestante e anencefalia fetal.
Oficialmente, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, alega que a decisão “não passou por todas as esferas necessárias”. Mas, para Sonia, não há dúvidas que houve pressão de movimentos ultraconservadores e religiosos.
“As mulheres aqui no Brasil continuam na resistência, lutando contra a extrema direita e parabenizam a luta das francesas por essa conquista. A gente sabe que a extrema direita está atuando no mundo todo tentando retroceder os direitos das mulheres. O fato de a França ter conseguido impor uma derrota aos ultraconservadores é muito importante para todos os movimentos progressistas no mundo”, sublinha a militante.