“O certificado não é para mim, é realmente para minha família. Não sei o que fazer. Estou perdida.” Essas são declarações de jovens muçulmanas em busca de um certificado de virgindade para proteger a honra da família e a crença religiosa de seus pais, diz Ghada Hatem. Ela é ginecologista, obstetra e fundadora da Maison des Femmes em Saint Denis, um subúrbio de Paris. A Maison des Femmes é um centro de aconselhamento para mulheres vítimas de violência.
A história se repete com frequência. “Elas ligam para a clínica e pedem um contato telefônico direto com o médico”, afirma Gada Hatem. “Então imediatamente sei do que se trata e converso com elas”, acrescenta.
Ghada Hatem é contatada, em média, três vezes por mês por jovens muçulmanas em busca de tal certificado. Pouquíssimos médicos na França conduzem de fato o exame, disse a ginecologista à DW. Os certificados, via de regra, são emitidos sem exame.
Tratamento humilhante de mulheres
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), testes de virgindade ainda são praticados em mais de 20 países ao redor do mundo. Durante o exame, o hímen é inspecionado visualmente ou com os dedos. De acordo com a OMS, tal exame é incapaz de provar se uma mulher ou uma menina teve relações sexuais vaginais ou não, pois um hímen rompido não é “evidência” de relação sexual. O exame representa uma violação dos direitos humanos, afirma a OMS.
Neste ponto, a Anistia Internacional é ainda mais direta: “Os chamados testes de virgindade são extremamente discriminatórios, violam os direitos à dignidade e à integridade física e mental e violam as disposições legais internacionais que proíbem a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”, afirma a organização de direitos humanos em um posicionamento online.
Em outubro de 2018, as Nações Unidas pediram aos Estados-membros que proibissem testes do tipo. Além disso, a ONU também faz campanhas para combater tais práticas prejudiciais, assim como para fortalecer a emancipação feminina.
Estratégia política ou ajuda real
Enviado aos presidentes da Assembleia Nacional e do Senado da França em novembro, o projeto de lei do governo francês para ratificar os “princípios republicanos” será examinado pelo Conselho de Ministros no dia 9 de dezembro. Segundo o presidente Emmanuel Macron, a lei deverá combater o Islã radical e o “separatismo”. O texto foi complementado por cláusulas contra o ódio online após o ataque a Samuel Paty, professor de história assassinado por usar em sala de aula as caricaturas de Maomé da revista satírica Charlie Hebdo.
Uma das cinco prioridades da lei é o fortalecimento dos direitos das mulheres por meio do combate à discriminação na herança, poligamia, casamento forçado e testes de virgindade.
Outros objetivos do projeto de lei incluem a luta contra o discurso de ódio nas redes, a laicidade obrigatória no funcionalismo público e a obrigação de respeitar os princípios e valores da república por qualquer associação que solicite uma subvenção governamental.
Marlène Schiappa, ministra adjunta da Cidadania no Ministério do Interior da França, disse que a lei prevê penalidades para aqueles que solicitarem testes de virgindade e para os médicos que emitirem o certificado.
A escritora e socióloga francesa Kaoutar Harchi, por outro lado, acredita que é um exagero proibir legalmente os certificados de virgindade. Segundo ela, em todo caso, eles raramente são solicitados. “É uma estratégia para estigmatizar a minoria muçulmana”, afirma, e ainda vai ainda mais longe: “A lei visa punir os médicos que realizam testes de virgindade. Mas ela também viola o princípio da separação entre Igreja e Estado, contra os valores republicanos e o pacto nacional”.
Médicos, feministas e ativistas pelos direitos das mulheres em geral também criticam o projeto de lei.
Uma proibição que não resolve o problema
“O governo está agindo sem nenhuma pesquisa ou estudo sobre o assunto”, diz Celine Piques, porta-voz da Osez le feminisme (Ousem o feminismo), uma das associações feministas mais importantes da França. Para o coletivo francês, a proibição dos certificados de virgindade não é a solução. Ghada Hatem também vê a proibição como um possível agravamento da situação para as mulheres que necessitam do certificado. Sanções para os médicos não resolveriam o problema, e sim o deslocariam, apenas.
Tal opinião é compartilhada por Celine Piques, para quem “a lei pode ser até contraproducente, já que pode acabar minando a relação de confiança entre médico e paciente”. Com a introdução da lei, as mulheres em questão ficarão privadas da oportunidade de evitar conflitos na família, ao tempo que, com o certificado, muitas teriam a chance de se proteger contra a violência. No entanto, a lei não será capaz de proteger as mulheres. No fim, elas seriam abandonadas e não teriam mais a oportunidade de confiar em uma pessoa de fora, como um médico.
Educar em vez de punir
As jovens que necessitam de tais testes vêm de famílias muçulmanas. Para Ghada Hatem, a mentalidade das pessoas não será alterada por uma lei e a proibição resultante. “Temos que garantir que os pais internalizem o fomento e o respeito pelos direitos das mulheres e que isso transcorra para a formação de suas filhas”, enfatiza.
Para Celine Piques, o governo teria que abordar o problema de forma muito diferente. “Precisamos ser capazes de proteger as jovens que estão expostas à violência e a ameaças de suas famílias por não serem virgens e oferecer a elas abrigos de emergência”.
Ghada Hatem continuará à disposição para aquelas que procuram ajuda. Se a lei entrar em vigor, ela planeja relatar ao Ministério Público todos os casos em que meninas e mulheres jovens estejam em perigo aparente.