A um ano e oito meses das eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) convive hoje com oposições fragmentadas à direita e à esquerda, em um cenário que pode beneficiá-lo na sua tentativa de ser reconduzido ao cargo.
Enquanto disputas internas consomem energia nos dois campos, a definição de candidaturas e a montagem de alianças começam a engatinhar, isso depois que a possibilidade de abertura de um processo de impeachment deu sinais de enfraquecimento.
Aspirante a opositor de Bolsonaro nas urnas, o governador João Doria (PSDB-SP) tropeçou em obstáculos domésticos nos últimos dias que podem dificultar seu sonho de candidatura nacional, nutrido desde sua vitória para prefeito da capital paulista, em 2016.
A semana problemática do tucano, na esteira da eleição de Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro, para a presidência da Câmara dos Deputados, envolveu também rusgas com o DEM, que vinha sendo tratado como aliado certo na eventual chapa de Doria.
O ex-juiz Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck (ambos sem filiação) engrossam a lista de potenciais candidatos, mas ainda são dúvidas para o jogo eleitoral. Os dois e Doria navegam em faixas ideológicas semelhantes, o que deixa o quadro ainda mais embolado.
O DEM, até então tido como peça-chave no tabuleiro do tucano, ainda aventa a possibilidade de lançar seu próprio presidenciável, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta.
A malfadada candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP) para o comando da Câmara, bancada por alas da direita e sustentada por deputados de centro e de esquerda, deu um gostinho dos desafios que virão pela frente.
À esquerda, o clima é de repeteco, com as habituais críticas à hegemonia do PT, que colocou na rua a pré-candidatura de Fernando Haddad, o adversário vencido por Bolsonaro no segundo turno de 2018. A movimentação foi autorizada pelo ex-presidente Lula.
Ciro Gomes (PDT) e Guilherme Boulos (PSOL) já haviam se colocado à disposição, o que alimenta ameaças à famigerada utopia de unidade da esquerda. Publicamente, os três partidos afirmam estar dispostos a formar alianças, mas nos bastidores as dificuldades para isso são consideráveis.
A pulverização de forças e a incerteza geral são vistas como atípicas por analistas e dirigentes partidários ouvidos pela Folha. Não se descarta, no entanto, a hipótese de que o ambiente desanuvie já nos próximos meses, abrindo espaço para coalizões.
A título de comparação, à mesma altura de 2013 —20 meses antes da reeleição da então presidente Dilma Rousseff (PT)— os principais pré-candidatos de 2014 já estavam bem explícitos, nas pessoas de Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB).
A situação no pleito de 2018 foi diferente porque no meio do caminho houve o impeachment de Dilma, e o então presidente Michel Temer (MDB) rejeitou a ideia de tentar reeleição.
Para o cientista político Carlos Melo, a fragmentação que assola os polos adversários de Bolsonaro é sintoma de um problema anterior: as cisões dentro dos próprios partidos.
“O DEM vive uma ambiguidade: é um partido da direita liberal ou o velho PFL fisiológico? E o PSDB, é o partido social-democrata do Fernando Henrique Cardoso ou uma sigla conservadora de direita? O PT é o PT do Lula ou o da Dilma?”, explana.
Para o professor do Insper, as tão faladas frentes anti-Bolsonaro só serão viáveis se, antes, as legendas fizerem o que chama de “uma depuração interna”, com o apaziguamento de tensões.
“Uma frente pode ter divergências, mas um partido tem que ter alguma unidade”, diz Melo.
“Quando você se depara com crises econômicas e democráticas mais profundas, com o surgimento de algo [Bolsonaro] que é percebido como uma ameaça ao próprio sistema político, natural seria que houvesse uma aglutinação.”
Defensora da união da direita, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) afirma não ver agora um cenário propício para isso. Ela, que esteve perto de ser vice de Bolsonaro em 2018, passou a fazer críticas a ele e já chegou a defender a renúncia do presidente.
Hoje, a parlamentar paulista de perfil conservador se mostra reticente sobre repetir o apoio a ele ou endossar outro postulante.
“Não tenho definido quem apoiarei. Tudo depende dos candidatos, de seus vices. O único nome que ainda faz algum sentido, a meu ver, é o de Moro. Os demais, respeitosamente, não penso em apoiar. Aliás, não penso nem sequer em votar”, diz.
No chamado setor progressista, a confirmação de Haddad como o possível postulante petista —considerando que Lula é hoje inelegível— incomodou alas do PSOL, do PDT e do próprio PT, que cobram um entendimento em nome de união desse campo.
O PT diz que o ex-prefeito foi lançado porque o partido precisa entrar no debate eleitoral de 2022 e rejeita as críticas de que estaria impondo um nome já derrotado por Bolsonaro.
“Temos que falar sobre um projeto alternativo para o Brasil, e esse projeto precisa ser vocalizado, papel que caberá ao Haddad”, diz a presidente nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR).
Segundo ela, a intenção é dialogar com partidos de centro-esquerda para construir alianças. “Todos os partidos têm legitimidade para apresentar nomes. Temos que procurar o Boulos, o Flávio Dino [PC do B], o Ciro, para que a gente estabeleça um grau de avanço para o Brasil.”
Em provocação ao outro lado, Gleisi afirma que é “a direita liberal” que está desorganizada. “A eleição para a presidência da Câmara [dos Deputados] abriu a chaga para a divergência entre eles. O PSDB está dividido, o DEM também. O racha lá é de projeto, diferentemente do que acontece no campo progressista.”
Segundo o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, o grupo de Ciro aprova a unidade da centro-esquerda e está aberto ao diálogo, desde que seja respeitado o projeto nacional desenvolvimentista defendido pelo ex-ministro.
O PDT mantém conversas com PSB, Rede e PV. “Tudo em cima do projeto. E hoje o nome do Ciro é o mais forte. Mas, se tiver um nome melhor que o nosso para defender o nosso projeto, nós aceitamos. Não temos orgulho, não”, contemporiza o dirigente.
“É direito do PT apresentar o Haddad. Mas, por enquanto, é só o nome. Um grande nome, mas não tem ainda o projeto. Fica mais difícil o diálogo”, diz Lupi.
Gleisi rebate: “O PT tem, sim, um plano de reconstrução e transformação do Brasil. Haddad é quem vai apresentar o projeto do PT e conversar com todas as lideranças”.
“O PT já governou o Brasil, tem projeto para o país, é o partido forte da oposição. Por que não teria direito de apresentar seu nome e seu projeto? É um debate que queremos fazer sem imposições e sem vetos. Estamos dispostos a fazer isso com o conjunto dos partidos de oposição”, diz ela.
Arestas à parte, os presidentes do PDT e do PT concordam no diagnóstico de que Bolsonaro chegará combalido à eleição, embora não menosprezem sua força.
“Penso que o senhor Bolsonaro terá muita dificuldade. A cada dia que o povo tomar consciência do mal que ele causa ao país, ele vai cair. O discurso dele se esvaiu. Não o vejo com essa força que a maioria vê”, analisa Lupi.
“Se continuarmos com desemprego e falta de renda, dificilmente ele consegue chegar às eleições no patamar que está hoje. Ele vai ser peça importante no jogo eleitoral, mas seu tamanho depende muito de como conduzirá a pauta econômica”, opina Gleisi.
“Nos encontramos em 22” foi a resposta dada em tom irônico por Bolsonaro a parlamentares de partidos de oposição que o chamaram de fascista e genocida enquanto ele participava da sessão de abertura do ano no Congresso, no início deste mês.
Segundo pesquisa Datafolha do fim de janeiro, o presidente é avaliado como ruim ou péssimo por 40% da população, ante 32% que assim o consideravam na rodada anterior da pesquisa, no começo de dezembro.
A piora no desempenho se deu em meio ao agravamento da crise de gestão da pandemia da Covid-19 e ao fim do auxílio emergencial. O benefício, responsável por turbinar a popularidade de Bolsonaro no ano passado, deverá voltar a ser pago, mas com valor menor.
O governo trabalha com a possibilidade de prorrogação por três meses, a partir de março, o que pode ser um trunfo para a melhora nos índices de aprovação.
Na avaliação da cientista política Camila Rocha, o atual titular do Planalto é o grande beneficiado pela resistência dos adversários eleitorais à costura de blocos.
“Sem uma definição [dos oponentes], ele se desgasta menos”, diz a pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que tem estudado o comportamento de eleitores bolsonaristas.
“Bolsonaro consegue reunir cerca de 20% do eleitorado, uma fatia que põe a mão no fogo e vota nele sem importar o partido, as propostas, nada. É uma situação diferente da de outras lideranças e partidos, que precisam lidar com mais variáveis”, afirma ela.
Camila diz ver com naturalidade os candidatos do tipo balão de ensaio apresentados por legendas a esta altura da disputa eleitoral, mas considera que uma demora prolongada na escolha dos competidores pode frustrar parte do eleitorado que busca alternativas a Bolsonaro.
“Nas pesquisas, tenho visto que as pessoas que são contra a continuidade do presidente, tanto eleitores dele que se arrependeram quanto quem não votou nele, falam muito da importância de ter uma união em torno de uma candidatura ou projeto. Esperam que os políticos não sejam tão míopes ou egoístas.”