O fim do auxílio emergencial vai mexer, de uma só vez, com a vida das pessoas e com a economia do país. O último crédito foi pago no dia 29 de dezembro e os saques derradeiros ainda serão feitos ao longo de janeiro.
O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deixou claro que não tem dinheiro em caixa para estender o benefício. Entre economistas, não há consenso em relação à prorrogação e seus critérios. Uns se preocupam com a questão social e outros com as contas públicas, já deterioradas.
Quem dependeu do benefício para se sustentar ou viu a vida melhorar com o suporte na renda diz que o ano começa com insegurança —e não é pouca gente. Foram 67,9 milhões de beneficiários, 4 em cada 10 brasileiros em idade de trabalhar.
No decorrer de nove meses, foram pagos R$ 292,9 bilhões. Na prática, segundo dados da Caixa, deixam de ser injetados na economia dos estados R$ 32,4 bilhões por mês.
Os efeitos no dia a dia de famílias e negócios, principalmente comércio e serviços, levarão um tempo para aparecer nas estatísticas, mas, para quem acompanha indicadores sociais, a perspectiva não é boa.
Como ainda não há garantia de uma retomada consistente na oferta de trabalho, a economista Diana Gonzaga, professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia), afirma que, sem um programa social, via transferência de renda, ou um plano econômico, que incentive a geração de empregos, as desigualdades regionais devem crescer.
O pagamento do auxílio emergencial foi especialmente relevante nos estados das regiões Norte e Nordeste.
“Essas regiões já vinham numa situação econômica mais frágil antes da pandemia, com desemprego alto e muita informalidade”, afirma. “Sem um plano de transição para o fim do auxílio, é muito provável que as crises sociais também se agravem.”
Quase 43% de todos os recursos do auxílio, cerca de R$ 125 bilhões, foram para o Norte e o Nordeste. De acordo com Roberta de Moraes Machado, economista da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), a distribuição do auxílio teve enorme impacto nessas regiões.
“São economias menos desenvolvidas, com maior taxa de desalento ou desocupados, atividades baseadas essencialmente na informalidade e na baixa complexidade”, diz.
As cinco primeiras parcelas do auxílio tiveram forte impacto sobre a geração de riqueza dessa parte do país. Contribuíram, em média, com uma alta de 6,5% do PIB (Produto Interno Bruto) dos estados do Norte e Nordeste, de acordo com estudo dos economistas Écio Costa, da UFPE, e Marcelo Freire, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
No município de Santarém Novo, no Pará, os R$ 13 milhões pagos nos cinco primeiros meses responderam por 27,2% do PIB municipal pelas projeções dos pesquisadores.
Ficou famoso o caso do comerciante Marinaldo dos Santos Cunha, 47 anos, dono de um açougue no centro do município paraense. Cunha mediu o efeito do auxílio emergencial na economia local em quilos de carne. Seu açougue chegou a vender o equivalente a um boi por dia durante a pandemia. Antes, era um boi por semana, contou à Folha.
O dinheiro inesperado levou ele e a esposa, Renata, a investir na abertura de uma farmácia. Agora, o município de pouco mais de 6.000 habitantes tem três drogarias. O casal também trocou de carro e comprou um terreno.
Marinaldo estima que nos próximos meses a vida vá voltar à rotina de antes, movida apenas pelo pagamento do Bolsa Família: quando o dinheiro é liberado, o comércio vende mais; passados uns dias, vende menos.
O economista da UFPE diz que, já se antecipando ao fim do benefício, as famílias se prepararam e pouparam, mas a tendência, se o emprego não reagir mais depressa, é que o consumo já caia em toda esta parte do país já a partir de fevereiro.
“Estamos falando de queda na transferência de renda aos mais pobres, o que consequentemente reduz consumo, afetando o comércio e o setor de serviços”, diz. “Só se tiver retomada da empregabilidade isso pode ser amenizado.”
Na região Norte, das 6,9 milhões de pessoas que receberam o benefício, 2,6 milhões já eram do Bolsa Família. No Nordeste, de 21,9 milhões de beneficiários do auxílio emergencial, 10 milhões estavam no programa que atende famílias em extrema pobreza.
A economista Diana Gonzaga defende a necessidade de o governo agir para criar uma transição entre o auxílio e outro benefício, com um valor menor, com critérios de concessão mais seletivos, mas que dê um suporte enquanto a pandemia não arrefece.
Ela afirma que os pequenos sinais de melhora de índices econômicos, como o da criação de vagas formais ou o aumento da população ocupada, praticamente não chegaram ao Norte-Nordeste. Quase 70% dos empregos com carteira criados até novembro estão no Sul e no Sudeste.
Nos estados do Sudeste, porém, a situação ainda é incerta para muita gente. Cerca de 38,44% do total pago via auxílio emergencial, R$ 112,6 bilhões, vão deixar de entrar no bolso de 26,4 milhões de brasileiros de baixa renda.
A reportagem da Folha foi conversar com pessoas que estavam, na quarta-feira (6), na fila do restaurante popular Bom Prato, em Santana, na zona norte de São Paulo, que vende refeições a R$ 1, subsidiadas pelo governo do estado.
Muita gente disse que recebia o auxílio emergencial. Maria das Graças, 52 anos, moradora
na Vila Albertina, na zona norte de São Paulo, era uma delas.
Há anos, trabalha como cuidadora de idosos, um dos principais grupos de risco da Covid-19. Justamente por isso, diz, não tem conseguido clientes ao longo da pandemia. Conta que muitas pessoas nessa faixa etária estão evitando contato com quem é de fora do circulo familiar.
Ela tem tentado trabalho em outras áreas, mas nada aparece. Mora sozinha, e o auxílio emergencial era a sua única fonte de renda. “Deveria continuar”, disse à reportagem. “Como a pessoa vai ficar sem auxílio e sem emprego?”
Stephanie Camargo, 24 anos, também aguardava na mesma fila. Contou que está no último semestre do curso de administração. Mora de aluguel no mesmo bairro, com a mãe e uma irmã. A jovem e a mãe são autônomas —fazem terapia holística e mapa astral—, e a irmã está desempregada.
Durante a pandemia, o auxílio complementava a renda, já que perderam muitos clientes. Não sabe nem como vai pagar a faculdade. “No meio de uma pandemia, com tanta gente desempregada, quem vai fazer mapa astral, terapia alternativa? É a primeira coisa que as pessoas cortam”, diz.
“O auxílio é uma contingência, mas o governo poderia ter encontrado outra forma de ajudar. A sensação é que a gente está completamente perdida.”
Mesmo as atividades mais tradicionais para os profissionais de baixa renda ainda não voltaram ao ritmo pré-pandemia. Diarista é uma delas.
Jaqueline Eustachio, 30 anos, foi uma das profissionais da área que sentiram a queda no volume de trabalho.
“Antes da pandemia eu fazia diária quase todo dia. Quando teve o surto, perdi várias clientes. Todo o mundo ficou com medo de que eu pudesse ser uma ‘contaminadora’”, afirmou a moradora da Brasilândia, na zona norte da capital.
Ela mora com três filhos pequenos. “Acho que não deveria ter acabado [o auxílio] pois a pandemia continua e, infelizmente, nós, que somos de baixa renda, somos os mais afetados. Se não fosse o auxílio, eu teria passado necessidade”, disse.
“Ainda não sei como vai ser daqui para a frente, porque não consegui retomar minha renda completa, minhas diárias.”
Adriana Bomfim dos Anjos, 45, que também trabalha como empregada doméstica, sofre com a mesma angústia. Conta que já vinha equilibrando as finanças mesmo com o auxílio.
A reportagem a encontrou na Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), na região oeste. Ela tinha saído do Grajaú, no extremo sul da capital paulista, para receber a xepa.
No local, junto com cerca de outras cem pessoas, pegou um kit com duas sacolas de verduras, frutas e legumes, na quinta-feira (7), doados por comerciantes que trabalham no Ceagesp. A doação ocorre semanalmente, desde outubro.
“Eu recebia o auxílio, me ajudava bastante e seria melhor que ainda continuasse por um tempo”, disse Adriana.
Antes de pandemia, ela conta que trabalhava três vezes por semana. Agora, depende de uma diária a cada 15 dias.
Quem busca emprego traça um cenário mais complicado e diz que ainda está difícil conseguir uma colocação.
No posto móvel do CATe (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo), que fica em frente ao Terminal Lapa, na zona oeste, Elena Maria dos Santos, 38 anos, aguardava na fila para verificar se existia alguma vaga.
Moradora de Itapevi, a auxiliar de limpeza recebeu o benefício desde o início da pandemia. “Eu esperava que continuassem pelo menos mais algumas parcelas. Está difícil conseguir emprego”, diz.
Sem o auxílio emergencial, a renda do marido passa a ser a única fonte para pagar as contas do casal e seus dois filhos.
Na avaliação do economista José Márcio Camargo, da Genial Investimentos, o avanço das vacinas melhora as perspectivas para o primeiro trimestre e suavizam os efeitos do fim do auxílio na vida das pessoas e na economia como um todo.
Segundo ele, além de evitar medidas de restrição para a circulação de pessoas, o início da imunização permitirá a retomada na prestação de serviços para as famílias, contribuindo para retomada do emprego, tanto formal, quanto informal.