O parafuso estava solto há tempos, a cadeira bambeando desde não se sabe quando. O dono da casa e, consequentemente, do objeto, durante esse período, equilibrava-se na peça, como na vida, o quanto era possível.
Já planejara por diversas vezes apertar o dito-cujo para cessar o balanço da mobília em questão. Pena que só lembrava que precisava fazê-lo quando se sentava à mesa, espalhava a bunda gorda na cadeira e ficava oscilando o talher prato dentro e prato fora.
Não era apenas uma aula de equilíbrio, muito mais um teste de sobriedade e pontaria. Talvez um curso intensivo para obtenção de serenidade e paciência. Uma verdadeira oficina sobre como não se irritar e nem alcançar a histeria e a fúria animal inerente a todo ser humano.
Como a união faz a força, diz o provérbio, outro parafuso se soltou da cadeira. Prova de que o ditado popular, sempre usado para referir-se a uma ação benéfica, também vale para o mal.
Estando os parafusos unidos, fazendo aquela mobília balançar como barco viking em parque de diversão, não sobrou alternativa ao usuário privativo, a não ser realizar os devidos, necessários e urgentíssimos reparos.
Somente por esse motivo, além do risco iminente de uma desvantajosa queda, que Altino decidiu decidir. Precisa resolver logo e definitivamente o caso da rebelião dos parafusos da maldade contra o santo dono guerreiro.
Levantou-se cuidadosamente da cadeira, apoiando todo seu peso na mesa, e caminhou até a pia sobreposta ao armário antigo, com estrutura revestida em fórmica de cor bege. Comportava duas portas desbotadas, uma delas lascada no canto superior direito.
Acomodava também quatro gavetas, igualmente pálidas, com puxadores desiguais. Abriu a segunda delas, onde estavam os talheres organizados em quatro seções: garfos, colheres, facas e um amontoado de outros utensílios domésticos.
Olhou, examinou e pegou uma faca de mesa tão antiga quanto sua maneira de pensar e tão velha como seu modo de agir. Foi até a cadeira, virou-a de cabeça para baixo, mesmo sem possuir cabeça (a cadeira). E começou o serviço.
A cada quatro tentativas de apertar o primeiro parafuso elegido para iniciar a missão, três eram frustradas. Uma vez que insistente era seu nome e demais seu sobrenome, prosseguiu com a tarefa hercúlea de reparar a mobília e organizar seu templo. No caso, a casa.
A faca, focada em fazer força e ferramentar a fera, falhava. Escapava a todo momento do parafuso. Acertava e riscava a mobília que, depois de um tempo, já estava toda arranhada.
A ponta do instrumento usado na empreitada entortou, mas não foi o suficiente para o Altino desistir. Só abandonou o trabalho quando a faca acertou seu dedo e o advertiu com um corte e gotas de sangue pelo chão.
Momento exato em que chutou a cadeira e atirou a faca com força no piso da cozinha. Viu ela saltar algumas vezes até parar no pé do armário desbotado, como se quisesse escalá-lo e pular de volta para seu compartimento no interior da gaveta.
Ele, furioso, olhou para ela, indefesa, esbaforiu ofegante e com o olhar fixo no metal gelado, proferiu desairosas referências a sua genitora – a da faca – (plagiando Guimarães Rosa), como se o talher pudesse ouvi-lo, como tivesse atributos “antropomorfáquicos”
Ao soltar o último acúmulo de ar pelas ventas, olhou de soslaio para o lado esquerdo e percebeu Dora entrando pela porta. Sua mulher era, e continuaria sendo sempre, esposa, oráculo e, naquele instante, sua engenheira doméstica.
Entregou-lhe à mão uma chave de fenda aparentando nova, de cabo verde e haste prateada reluzente. Antes que ele fosse capaz de qualquer reação, ela agachou-se, levantou a cadeira e segurou-a firme com as mãos e os pulsos cerrados pela base do encosto, apoiando o objeto entre as pernas.
Altino, então, curvou-se, segurou forte uma das pernas da cadeira e apertou os parafusos soltos. Não deu mais que cinco voltas ao todo para firmá-los na madeira e deixar a mobília estável.
Antes que terminasse o teste final, sentado na cadeira, mexendo o quadril para os lados e o corpo para cima e para cima, quicando levemente sobre o assento, Dora colocou à sua frente, sobre a mesa, um prato transparente com abundante quantidade de manjar.
Antes mesmo de levar a primeira porção à boca, Dora viu os pensamentos de Altino saírem pela janela aberta, que recortava a parede do lado esquerdo da cozinha. Arrastados pelo vento suave da manhã, foram refletir no infinito.
A história de Altino e Dora pode assemelhar-se a tantas outras de personagens distintamente iguais. Quando não usamos as ferramentas adequadas para reparar as avarias e organizar nosso ambiente, nos ferimos, sangramos e enfurecemos.
Sempre que usamos a ferramenta adequada ou encontramos e permitimos que alguém nos ofereça esse instrumento, não haverá prejuízos materiais ou emocionais no processo do trabalho de reparação das avarias.
Cada um tem sua hora, sua Dora, sua cadeira, sua esteira, seu jeito de amar, seu manjar. Dedique-se em refletir. Disponha-se a permitir.
Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com