A novela “Terra e Paixão” chegou ao fim na última sexta-feira (19). No último capítulo da trama de Walcyr Carrasco, o vilão Antônio La Selva (Tony Ramos) é morto por seu ex-capanga Ramiro (Amaury Lorenzo), após fugir da cadeia e tentar invadir o casamento de seu filho Caio (Cauã Raymond) com a professora Aline (Bárbara Reis). O folhetim encerra com um final feliz dos mocinhos, em meio à narração do pajé Jurecê, vivido pelo ator e escritor indígena Daniel Munduruku.
Na vida real, os finais nem sempre são felizes para quem vive cercado pelo latifúndio. Em 2020, uma inspeção na Fazenda Salto, no município de Nioaque (MS), conduzida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), encontrou quinze trabalhadores em situação degradante — sendo oito menores de 18 anos e três paraguaios. Três deles tinham 15 anos, o que configura trabalho infantil. O imóvel pertence à Valor Commodities, um dos maiores grupos comercializadores de grãos, carne e pescados do Mato Grosso do Sul, e dono da Fazenda Annalu, que recebeu as gravações da novela “Terra e Paixão”.
Em uma série de reportagens, De Olho nos Ruralistas mostrou o histórico de violações ambientais na fazenda usada pela Rede Globo e em outras propriedades da família Rocha, dona do Grupo Valor. A investigação mostrou as conexões políticas do diretor da empresa Aurélio Rolim Rocha, ex-assessor da ministra Tereza Cristina, além de expor as dívidas milionárias da empresa junto às multinacionais Bunge e Seara, que pediram a penhora dos valores pagos pela emissora carioca para gravar na Fazenda Annalu.
A lista de violações encontrada pelo MPT em Nioaque é extensa. As vítimas não recebiam equipamentos adequados para o manejo de agrotóxicos, tampouco tinham acesso a água e sabão para se lavarem após o contato com as substâncias tóxicas. Segundo o texto da denúncia ao qual a reportagem do De Olho nos Ruralistas teve acesso, os trabalhadores eram “forçados a viver em barracos de lona, numa estrutura totalmente improvisada em um curral, dormindo em camas feitas com tábuas e fazendo suas necessidades fisiológicas num buraco, ou então no mato”.
O documento revela que o banheiro, improvisado com lonas plásticas e sem teto, estava bastante sujo no momento da inspeção, tornando seu uso inviável. De acordo com o relato dos trabalhadores, a situação sem higiene e segurança deixava-os expostos ao ataque de animais peçonhentos, como cobras e escorpiões, comumente encontrados na região.
Em uma segunda vistoria, realizada em outubro de 2022, os fiscais encontraram alojamentos ainda precários. Os quartos, divididos por várias pessoas, eram cubículos mal ventilados e com quase nenhum espaço entre as camas. Paredes sem pintura e ausência de armários completavam o cenário insalubre.
Pela jornada diária de até nove horas de trabalho — de segunda a sábado — os empregados recebiam entre R$ 50 e R$ 60 por dia. Somado o tempo de deslocamento, ficavam à disposição dos contratantes por quase 12 horas diárias. O MPT constatou ainda que os empregadores não realizavam o depósito mensal do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Entre as obrigações dos trabalhadores, estava a limpeza do solo para o plantio de soja. Para isso, eles recolhiam pedras e raízes com as próprias mãos.
DONOS DA FAZENDA SABIAM DAS CONDIÇÕES DEGRADANTES, DIZ MPT
Desde julho de 2020, a Fazenda Salto vinha sendo arrendada por Maísa Rodrigues da Costa, que teve seu nome inserido na “lista suja” do trabalho escravo. O imóvel de 2.882 hectares pertence a Aurélio Rolim Rocha, o Lelinho, diretor da Valor Commodities, que não foi ouvido durante as investigações. No entanto, de acordo com o relatório final do Inquérito Policial, apresentado em abril de 2023, “ficou também evidenciado que o gerente e os proprietários da Fazenda Salto sabiam das precárias condições dos trabalhadores”.
Em depoimento à Polícia Federal, a agropecuarista contou que sua família é responsável por terras em outros estados e alegou não ter conhecimento das condições precárias de trabalho na Fazenda Salto porque não visitava o local. Aos policiais, Maisa afirmou trabalhar ao lado dos irmãos Wanderley e Wanilton Rodrigues da Costa, que assinam como fiadores o contrato de arrendamento da Fazenda Salto. “A gente tem área em Roraima, no Maranhão e aqui no Mato Grosso do Sul”, revelou. “A gente toca 35 mil hectares, eu não tenho como ir nas fazendas”.
A reportagem teve acesso ao vídeo do depoimento, onde Maisa afirma que um dos funcionários seria o responsável pela contratação dos demais trabalhadores. No entanto, o nome dele aparece na lista de vítimas no processo de investigação.
O contrato de arrendamento rural tem duração de dez anos e garante ao proprietário do imóvel uma participação sobre o produto da colheita. Iniciado como uma parceria agrícola, o acordo previa a limpeza da propriedade e a conversão da pastagem em lavoura. Os arrendatários haviam se comprometido a iniciar o plantio com a área limpa — normalmente um eufemismo para o desmatamento — em até um ano a partir do início da vigência do contrato.
No processo, que corre na Vara de Trabalho de Jardim (MS), do Tribunal Regional do Trabalho da 24º Região, Maisa firmou um acordo de pagamento das verbas rescisórias acrescidas de R$ 5 mil a título de indenização por danos morais para cada trabalhador. O valor total é de R$ 146.286,00, a ser pago em cinco parcelas de R$ 29.257,20. Após a conclusão do inquérito policial, o MPF ofereceu a denúncia em agosto de 2023, sem incluir os proprietários da Fazenda Salto entre os réus. A denúncia foi aceita pela Justiça Federal em agosto do ano passado, pela 3ª Vara Federal de Campo Grande. O processo está em curso.
Em 2022, após a segunda vistoria, Maísa voltou a ser autuada pela fazenda permanecer transgredindo uma série de leis trabalhistas. Ela firmou um novo acordo em março de 2023 para pagamento de R$ 13 mil devido às novas irregularidades constatadas.
Em seu site oficial — retirado do ar após o início da publicação desta série de reportagens —, o Grupo Valor incluía a Fazenda Salto entre as propriedades ligadas à empresa. Em 2021, um ano após a vistoria que identificou trabalho infantil na propriedade, Aurélio Rolim Rocha conseguiu junto ao governo Bolsonaro a permissão para instalar um aeródromo privado na Fazenda Salto.
De Olho nos Ruralistas tentou novamente contato com os representantes de Lelinho e do Grupo Valor. Assim como nas primeiras reportagens da série, nossa equipe não obteve retorno. O observatório também buscou ouvir a arrendatária Maisa Costa, sem sucesso.
DENÚNCIA DE DESMATAMENTO GEROU FLAGRANTE TRABALHISTA
O inquérito para investigar o trabalho análogo à escravidão na Fazenda Salto, aberto em 2021, se iniciou por acaso, após o Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) receber uma denúncia de desmatamento na propriedade. Com a ajuda de imagens de satélites, o órgão identificou a supressão de aproximadamente 105 hectares de Cerrado.
A primeira visita técnica do MPMS para apurar o desmate ilegal se deu em dezembro de 2020. Na propriedade, foi constatado o corte raso de aroeira, uma espécie nativa protegida por lei. A portaria 83-N de 1991, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), proíbe o corte da aroeira — considerada uma madeira nobre — sem plano de manejo aprovado pelos órgãos ambientais. Mesmo em caso de desmatamentos autorizados, a espécie não pode ser cortada. Durante a operação na Fazenda Salto, foram apreendidas 415 lascas de aroeira, avaliadas em R$ 10.436,00, bem como 36 troncos, medindo 2,2 metros, avaliados em R$ 1.157,00.
Foi durante essa vistoria que a equipe do MPMS foi surpreendida pela presença de adultos e adolescentes vivendo e trabalhando em condições insalubres. O caso foi então repassado ao MPT.
Entre as irregularidades, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Fazenda Salto previa uma Área de Preservação Permanente (APP) inferior à prevista pela legislação ambiental. A lavoura de soja invadia a faixa destinada à preservação das margens do Rio Apa. No processo, a atual arrendatária afirma não ter relação com qualquer inconsistência no CAR da propriedade, atribuindo a responsabilidade a Lelinho Rocha e ao Grupo Valor.
Em 2022, ano seguinte à instauração do Inquérito Civil que apurou os crimes ambientais, novas imagens de satélite identificaram o aumento da área desmatada. Segundo relatório formulado pelo Núcleo de Geotecnologia do MPMS, a supressão vegetal na Fazenda Salto atingiu 219,56 hectares. Mais que o dobro do que fora constatado anteriormente em 2021.
Maisa Rodrigues da Costa nega a responsabilidade pelo novo desmatamento. Em julho de 2023, Lelinho foi notificado para esclarecer os danos ambientais, mas ainda não se manifestou no processo.
SÉRIE REVELOU IRREGULARIDADES EM SÉRIE EM IMÓVEIS DA FAMÍLIA ROCHA
Em Nioaque (MS), além da Fazenda Salto, local do flagrante das irregularidades, o grupo Valor Commodities mantém outras duas fazendas, a Fazenda Porteira Velha e a Fazenda Vaticano. Somadas, as propriedades no município atingem 5.949,36 de extensão.
Segundo o site do grupo, a companhia tem 50 mil hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, além de uma empresa de aviação, seis postos de abastecimento de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. O patrimônio da família Rocha inclui ainda o megaprojeto de piscicultura da Fazenda Annalu, que rendeu uma denúncia do MPMS pela instalação irregular de drenos.
A dimensão desse império — comparável ao de Antônio La Selva, na novela “Terra e Paixão” — é detalhada em vídeo publicado no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube. Além das videorreportagens, o observatório produz documentários sobre questão agrária, como Elizabeth e SOS Maranhão, e mantém editorias fixas sobre História e sobre as ações da bancada ruralista no Congresso.