quinta-feira, 19 de setembro de 2024
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Da Terra do Sol Nascente à “Terra Brasilis”

O Centenário da Imigração Japonesa 18 de junho de 1908. Chegaram a Santos, trazendo consigo cultura milenar, os pioneiros da imigração nipônica. Eram 781 contratados, 10 espontâneos e outros. No…

O Centenário da Imigração Japonesa

18 de junho de 1908. Chegaram a Santos, trazendo consigo cultura milenar, os pioneiros da imigração nipônica. Eram 781 contratados, 10 espontâneos e outros. No vapor Kasato Maru haviam partido de Kobe, em 28 de abril de 1908. Para eles, um horizonte de esperança se abria. O Brasil os recebia com fundamento no Decreto-lei nº 97, de 5 de outubro de 1892. Em 1895, fora assinado o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Japão. Historiar os fatos em suas minúcias? Não, não é isto que pretendo. Os historiadores o farão melhor.

Navio Kasato Maru

Criança ainda ia visitar meus avós. Lá, a felicidade imensa de suas presenças. Depois, o sítio, o espaço, o encontro de primos e tios, o ar puro, o céu azul, o sol, um resto de mata atlântica, límpidos riachos, noites escuras, milhões de cintilantes pontinhos, a Via Láctea. Amiúde deitava-me a olhar fixamente aquele céu e, de inopino, mergulhava numa velocidade incrível na direção infinda das estrelas. Deus existe, é Ele o Criador, dizia silenciosamente a mim mesmo.

Ensimesmado nessas cogitações, ouvia a voz meiga de vovó a lembrar-me do banho diário de ofurô. Já entrado em anos, Keida Harada, meu avô, como fazia todos os dias desde que chegara ao Brasil, em 1913, escrevia preciosas notas. Eram fatos prosaicos do cotidiano, não só da família, mas também daquela operosa colônia japonesa. Esse documento testemunha mais de seis décadas. Meu avô e minha avó tinham muito contato com parcela grande de famílias japonesas, pois ele fundara e por muito tempo dirigira a Cooperativa Agrícola de Suzano. Era também uma espécie de conselheiro, até mesmo intermediando o casamento arranjado (“miai”), que, para meu espanto, parecia sempre dar certo. Compartilhara, assim, com elas, a cortante nostalgia da Terra das Cerejeiras, as doenças, as agruras econômicas, o sofrimento dos tempos da guerra, a perseguição.

Mas não foram só tristezas e angustias. Havia o “undokai”, uma espécie de gincana familiar esportiva e recreativa. A delicada arte dos arranjos florais (“ikebana”) de vovó, a cerimônia do chá (“chanoyu”), o longo cultivo das árvores anãs (“bonsai”), as mágicas formas das dobraduras (“origami”), o marcial ribombar do “taiko”, tambor japonês. As canções (como não me recordar da tradicional “Sakura”, flor de cerejeira? Do “karaoke”?), as estórias e a deliciosa culinária, especialidade de minha avó. Não há olvidar o judô, o caratê, o sumô, a arte do manejo da espada (“kendo”), que guardam perfeita complementaridade com o crisântemo, a sofisticada, suave e sutil estética japonesa. Depois, a tenacidade, o esforço e a paciência fizeram com que um filho seu, meu pai, pudesse bacharelar-se em direito na Faculdade do Largo de São Francisco, onde também me formei.

Exigia-nos de todos os netos retidão, estoicismo de samurai, sabedoria, disciplina e muito trabalho. Cobrava-nos estudo, leituras e meditação sobre as disciplinas. Respeito absoluto aos mestres. Disse-me certa feita: “não se pode sequer pisar na sombra de um professor”. Depois, aconselhava a não me remoer em dúvidas: “Pergunte sempre. Não se esqueça do provérbio nipônico: perguntar é vergonha de um dia, a ignorância, vergonha para toda a vida”. Quando eu esmorecia, ele, voz firme e entusiasmada, exclamava: “gambarê! Gambarê!” (em português: ânimo, seja forte, lute apesar de todas as dificuldades). E lá, das profundezas de meu desânimo, da dor e do pessimismo, da raiz de meu ser, clamava a Deus a força da superação. Ensinava-nos que este era o espírito nipônico. Era assim que iríamos contribuir para o nosso crescimento e para compor e colorir esta linda aquarela do Brasil. “Do meu Brasil brasileiro”, “desse Brasil lindo e trigueiro”, da “morena sestrosa”, das “fontes murmurantes”, da intuição, da criatividade, da candura fagueira.

Meu avô que nunca perdera o filial e ardente amor à Terra do Sol Nascente, pôde ostentar com orgulho o título de cidadão brasileiro outorgado por decreto presidencial. Com sua mulher, filhos e netos, na saga de milhares e milhares de imigrantes japoneses e descendentes, seus corações puderam sentir o abraço das chamas de um profundo e irremediável amor: amor à terra de Santa Cruz, que com sangue, suor e lágrimas ajudaram a construir. Amor a esta sagrada “Terra Brasilis”! “Terra de Nosso Senhor! Brasil!”

*CÍCERO HARADA é advogado, procurador do Estado de São Paulo, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia e conselheiro da OAB.

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