sábado, 21 de dezembro de 2024
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Crônica sem tempo

O tempo que perseguimos o tempo todo, perdendo tempo para ter mais tempo, perdeu-se em um tempo que não mais voltará. Hoje, estamos no tempo de pouco tempo, tempo de…

O tempo que perseguimos o tempo todo, perdendo tempo para ter mais tempo, perdeu-se em um tempo que não mais voltará.

Hoje, estamos no tempo de pouco tempo, tempo de não ter mais tempo. O próprio tempo gastou todo seu tempo nos tirando nosso tempo de ter tempo. Parece muito tempo, mas não tem tanto tempo assim.

Faz muito pouco tempo em que esperávamos a carta chegar pelo correio, às vezes, anunciada num breve telefonema do remetente, de um aparelho onde se discavam os números, sem nos deixar ansiosos enquanto aguardávamos a missiva.

Se ansiávamos, não era com essa impaciência dilacerante dos dias atuais, apenas uma expectativa sobre a que horas e em qual dia iríamos abrir um sorriso de contentamento ao ver o envelope sob a porta da sala ou o som das palmas do carteiro anunciando a chegada de palavras a serem lidas uma por uma, apreciando cada rabisco do papel.

Ainda que elas não fossem para contar novidades, mas simplesmente (não como advérbio de simples, mas sinônimo de singelo) para reafirmarem um amor, uma amizade, um “estou de mal”, nesse último caso desprezado com um “come sal, na panela de mingau, deixa um pouco pro natal”, balançando os ombros para cima e para baixo, sem constrangimentos, decepção, sensação de desprezo da parte alheia, tão somente poucos dias de hiato na amizade, até voltar como era antes. Tudo isso, entre duas pessoas somente, sem que o mundo inteiro ficasse sabendo. No máximo, mais um ou dois amigos comuns.

Também não faz muito tempo em que havia tempo de sobra, em que o tempo não corria, nem voava, somente passava. E quando passava. Até precisaram inventar o jogo de passatempo. Agora, esperamos ansiosos o lançamento de um aplicativo de paratempo. Desculpe o neologismo, não tive tempo de pesquisar o avesso de deixar o tempo passar.

Depois de inaugurarem as fábricas, inventaram os trabalhadores com relógios de bolso, de pulso, de parede, de ponto. Após inventarem os trens, das igrejas retiraram os sinos e, em seu lugar, inauguraram as torres dos relógios. Foi nesse tempo que começaram a querer controlar o tempo. Tempo perdido. Desperdiçaram tempo, o tempo todo, até perderem todo tempo.

Não temos mais tempo para ter tempo de sobra. Quase nada sobra a não ser qualquer atividade que nunca termina, porque não há tempo suficiente para acabar a obra.

Nem tempo para comemorar temos, sequer lemos todo o convite para a festa, enviado em uma única transmissão para todos os convidados escolhidos da nossa lista do WhatsApp. Quem não tem o aplicativo, obviamente, não foi convidado. Como pode não o ter, deve ser alguém que está fora do nosso tempo.

Nem mesmo tempo para visitar amigos, nos deslocar para outras cidades, onde parentes farão festas de aniversários. Só teremos algum o tempo se formos a velórios, com cara de otários.

Os físicos garantem que um dia continua tendo vinte e quatro horas, uma hora sessenta minutos e um minuto ainda tem sessenta segundos. É o que eles dizem, porém não é o que sentimos.

Há muito mais coisas entre o ser e o sentir do que pode imaginar nossa vã teoria. Sem qualquer drama ou liturgia, há muito menos horas entre o viver e o imaginar do que pode idealizar nossa sã alegoria.

A crônica de nosso tempo é de uma crônica insuficiência de tempo, de uma falta que não dá para descrever, de uma crônica sem tempo para escrever, mas, se a leu, até esta última linha, teve seu tempo e, quem sabe, sua vida não esteja assim tão crônica.

Sérgio Piva

s.piva@hotmail.com

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