Imagens compartilhadas em uma rede social mostram crianças empunhando armas de pressão, conhecidas como “airsoft”, em um treinamento de atirador mirim do Clube de Caça e Tiro Hunter, em Jataí, no sudoeste de Goiás. O Conselho Tutelar da cidade acompanha o caso e, segundo a Polícia Civil, a corporação comunicou a ocorrência ao Ministério Público. A promotora Patrícia Galvão, titular da 7ª Promotoria de Justiça, fez uma recomendação para que o clube deixe de ofertar essas aulas para crianças.
O g1 ouviu especialistas na área do direito criminal, de segurança pública e da psicologia, que avaliaram o curso como prejudicial às crianças, que estão em formação. De acordo com os estudiosos, mesmo não sendo uma arma de fogo verdadeira, o curso pode estimular um comportamento violento nos menores e estimular a cultura do ódio, ainda mais em um contexto de aumento na violência nas escolas (entenda melhor abaixo).
Em nota, o Clube de Caça e Tiro Hunter Jataí disse que o curso foi realizado no dia 1º deste mês de forma recreativa, após a inscrição e autorização dos pais. O clube informou que foi um curso de tiro esportivo e manuseio da arma de pressão com instrutores habilitados, na presença dos responsáveis dos menores.
Segundo o clube, a intenção foi ensinar o manuseio do arsoft e demonstrar que, mesmo sendo um “brinquedo”, tem regras de uso para evitar acidentes. O clube disse que atendeu todas as exigências legais e morais para o evento e repudia qualquer prática irregular de tiro esportivo.
Punições ao clube
Pedro Paulo de Medeiros, advogado criminal e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), explicou que o curso não tem vedação legal, ou seja, não é crime. No entanto, segundo o advogado, o clube precisa de uma autorização administrativa que dê o direito expresso às crianças participarem.
Caso essa autorização não exista, a empresa pode sofrer penalidades administrativas, como a cassação da licença de funcionamento. O g1 questionou a Hunter Jataí se o clube tem a autorização administrativa para ministrar o curso, mas não teve retorno até a última atualização desta reportagem.
O advogado pontuou que o fato da arma ser de pressão não exime a culpa do clube, pois o curso em si incentiva a formação de pessoas com viés violento.
“É uma arma de pressão por um simples motivo: porque a legislação não permite que criança pegue em arma de fogo. Caso contrário, pode ter certeza que entregariam armas de fogo de verdade”, falou.
Alerta de especialistas
O antropólogo Robson Rodrigues, policial aposentado e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirmou que é contra que crianças tenham acesso a esse tipo de equipamento usado no curso. Segundo Robson, o curso pode estimular a cultura da violência, ao invés de incentivar a paz.
“Temos que tomar cuidado com a arma, por mais que se alegue que é defesa, caça ou esporte. O resultado é violento, mesmo o discurso dizendo que não”, alertou.
Robson reforçou ainda que, com o aumento de casos de violência em ambientes escolares, as instituições deveriam se preocupar em promover um comportamento pacificador das crianças.
“Eu sou terminantemente contrário em virtude dos efeitos que essa cultura, ou subcultura, pode acabar produzindo em crianças, jovens e adolescentes que estão em formação. A gente precisa promover no país um outro tipo de cultura de paz, em virtude dos números de violência, que são altos”, disse.
Segundo Robson, qualquer ensino, quando mal conduzido, pode ter efeitos contrários aos previstos. No caso de um curso de atiradores, por exemplo, pode estimular o comportamento que vai na contramão do que as escolas precisam.
“Neste caso de um equipamento de ar comprimido, aparentemente não é tão letal, dependendo de como ele é utilizado, mas ele pode ser letal sim. Você tem ali nas tenras idades das crianças uma aclimatação para uma cultura que é muito perigosa”, afirmou.
O antropólogo pontuou ainda que os estudos apontam que o Brasil é um país muito violento, em comparação a outros nas mesmas condições. Por isso, a criação deste curso é ainda mais condenada, segundo Robson.
“A ideia é facilitar o trabalho da segurança pública em uma forma geral. Você tem esses espaços atormentados pelo medo, pelo terror, isso é deletério, eu acho de extremo mal gosto e estímulo para que crianças e adolescentes tenham esse comportamento”, disse.
Danos psicológicos
A psicóloga Camila Wolf ressaltou que a sociedade vive em um momento delicado de violência e tensão nos ambientes escolares e acredita que é preocupante a escolha de pais colocarem os filhos em cursos de atirador infantil. Camila alertou que as crianças podem não conseguir identificar as diferenças entre uma arma real e uma arma falsa, o que aumenta o risco de acidentes indevidos.
“É preciso saber qual o objetivo deste curso? Quais são as razões que levam um pai ou mãe levar o filho para esse curso? É para defesa? Esporte? Lazer? Será que não existem outras atividades disponíveis que são capazes de atingir esse objetivo, mas que contribuem para o desenvolvimento físico, emocional e social dessa criança?”, questionou.
No entanto, Camila ponderou que não é “uma regra” que esse tipo de curso vai influenciar comportamentos violentos nas crianças. Os danos em crianças inseridas em famílias estruturadas com diálogo e respeito, por exemplo, pode nem chegar perto da dimensão dessa incentivo em famílias com problemas.
“Quando existem outros elementos no contexto, como abandono, violência, negligência, incitação ao ódio, humilhação, a situação fica mais complicada e o acesso às armas se torna mais perigoso”, narrou.
Uma recomendação da psicóloga é que os pais incluam as crianças em esportes que desenvolvam a tolerância, a frustração, que ensine os menores a saber ganhar, perder, além de lições de companheirismo e senso de coletividade, longe das armas.
“Arma não é brinquedo e nem deve ser utilizada por crianças”, finalizou.