“Nunca tinha passado por tanta dificuldade. Tem dia que dá vontade de chorar. Já cheguei a não ter nada para comer. Procurei o hospital passando mal e o médico me falou que não era doença, mas fome. Que tinha que arrumar vitamina, comer legumes.”
O relato é de Nazara Aparecida, moradora da região Norte de Rio Preto. A aposentada é responsável pela renda de quatro pessoas, sendo amostra da fome na região. Assim como ela, outras 28 mil famílias da região de Rio Preto passaram a viver em situação de extrema pobreza, de acordo com o Ministério da Cidadania. São famílias que vivem com uma renda de até R$ 89 por pessoa todos os meses. “Na verdade, a gente sobrevive”, diz a idosa de 62 anos.
Da mesma forma que em outras partes do Brasil, a fome também bate na porta de famílias da região de Rio Preto. O afago vem da ajuda solidária de projetos sociais e governamentais, que tentam amenizar a dor que não tem hora nem lugar. “Antes pegava as frutas e legumes que caiam no chão da Ceagesp para comer, agora eles estão distribuindo cestas pra gente. Nunca pensei em passar por essa situação”, diz Olésia Miola, de 63 anos.
A alta dos preços dos alimentos, combustível e até do custo de vida fez com que a situação das famílias mais pobres da região se agravasse. Até quem não tinha dificuldades de colocar a comida no prato da família passou a conviver com a incerteza do que vai comer no dia seguinte.
“Eu vim para pegar o alimento que caí no chão, aí o guarda falou que não podia pegar e que teria distribuição de cesta. Eu confesso que me sinto envergonhado, porque trabalhei durante tanto tempo na vida. É difícil de passar por uma situação dessas”, falou Celso do Carmos, de 66 anos.
Dados do Ministério da Cidadania, compilados pelo Diário, apontam que de 32.709 famílias cadastradas no antigo Bolsa Família, em março de 2020, a região passou para 36.588, em outubro de 2021. Um aumento de 11% no Noroeste Paulista. Somente em Rio Preto, o número de beneficiários aumentou 23%. De 9.425 para 11.617. “Sem o bolsa família, não sei como seria”, disse Maria Nilza, moradora da Favela da Vila Itália.
Segundo a secretária de assistência social de Rio Preto, Helena Marangoni, para solicitar a cesta básica, a família que se encontra em situação de vulnerabilidade deve procurar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de seu território. “Só neste ano, já distribuímos aproximadamente 20 mil cestas básicas na cidade”, afirmou.
Em Rio Preto, também cresceu o consumo das miudezas do frango nos últimos meses. Açougueiros da região Norte contam que o consumo de pé e até pescoço de galinha mais do que dobrou no segundo semestre deste ano. Com o alto preço da carne, as miudezas do frango viraram refeição para as famílias mais pobres da cidade.
“Antes eu vendia uma caixa com pé e pescoço de frango, agora vendo de três a quatro caixas na semana. O pessoal compra o básico do básico, não é mais aquela venda de carne como antes”, disse o proprietário do mercado e açougue do bairro Dignidade, Henrique de Paulo Costa. “Como o valor da carne abaixo um pouco, a situação tem melhorado. Colocamos o preço mais barato e acaba por vender tudo”, disse o empresário José Carlos Viale, proprietário do frigorífico JC, no bairro Eldorado.
Ao mesmo tempo, também cresceu o número de pessoas indo até a Ceagesp em busca de frutas e legumes que seriam descartados. “Dobrou o número de famílias vindo para cá pedir ajuda. Agora, fora a distribuição que já realizamos para cerca de 50 entidades sociais, estamos também fazendo doação de cestas diretamente para famílias às quartas e sexta-feiras”, explicou Carmo Martin Macedo, gerente do entreposto da Ceagesp Rio Preto.
A fome é uma violação de direitos humanos
A fome traz reflexos muito além da angústia e dor física do momento. Ela também pode prejudicar o crescimento de crianças e adolescentes e deixar mais vulnerável adultos e idosos para doenças infecciosas.
Relatos como o de dona Nazara Aparecida, que procurou atendimento médico achando estar doente, mas descobriu estar com fome são amostras da insegurança alimentar. São famílias que viram minguar durante a pandemia as possibilidades de um cardápio variado com arroz, feijão, carne e legumes.
Segundo Melissa Luciana de Araújo, nutricionista e pesquisadora da Comissão Permanente de Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), não poder se alimentar adequadamente é uma amostra de violação de direitos humanos. “Quando as crianças não se alimentam direito, elas podem ter um déficit de crescimento e até cognitivo. No caso da gestante, pode até comprometer o desenvolvimento da criança”.
A professora Ana Maria Cervato-Mancuso, do departamento de nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), explica que a condição de insegurança alimentar e nutricional é caracterizada por dois aspectos: o primeiro relacionado à falta de acesso ao alimento caracterizando situações de fome e pobreza. E o segundo refere-se a ter acesso aos alimentos, mas por uma prática alimentar que não promove a saúde nem dos indivíduos nem do planeta.
“A insegurança alimentar e nutricional é acentuada quando, além da falta de dinheiro para comprar alimentos em quantidade suficiente, há diminuição da qualidade da dieta. Nesse cenário, é comum observar os adultos reduzirem o consumo alimentar para manter o consumo quantitativo de alimentos pelas crianças do domicílio; tal situação se caracteriza por insegurança alimentar e nutricional moderada”, apontou Ana.
Ainda segundo a pesquisadora, o consumo elevado de miudezas de frango, como vem ocorrendo no Brasil, como forma de fugir dos altos preços da carne bovina, aumenta o consumo das chamadas gorduras não saudáveis relacionadas ao risco de doenças cardiovasculares. “Essa privação de alimentos em crianças está associada a uma maior prevalência de hospitalização, infecção respiratória, febre, diarreia e deficiências nutricionais, como deficiência de ferro (anemia) e outras formas de desnutrição, em comparação com crianças que vivem em lares com segurança alimentar”, completou.
Pedido de ajuda dispara
Quem passa pelas ruas e avenidas de Rio Preto deve notar o aumento do número de pedintes. Se antes eram apenas pessoas em situação de rua, atualmente, até mesmo famílias estão indo para o semáforo pedir ajuda para sobreviver: seja vendendo balas, chicletes, pipoca ou até entregando panfletos nos semáforos da cidade.
Vilson Alves da Silva, de 57 anos, é um deles. Faça chuva ou sol, ele está no cruzamento da avenida Danilo Galeazzi vendendo balas e pás coletoras feitas com latas de tinta recicláveis. “Além de tentar vender para ajudar na renda, eu ganho uma cesta básica para entregar os panfletos”, disse.
Morador do bairro João Paulo 2º, o ex-trabalhador do campo mudou-se na década de 1980, de Santa Fé do Sul para Rio Preto. “Aqui tem dia que vende, tem dia que não vende. Em média, tiro de 30 a 40 reais vendendo as pás. Começo de manhã e fico até às seis horas”.
O professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jorge Alexandre Neves, diz que a pandemia agravou a situação das famílias brasileiras e que pode se agravar mais com o fim do auxílio emergencial.
“A pandemia deixou quem já era vulnerável ainda mais vulnerável. Houve uma precarização extrema do mercado de trabalho formal. Vimos que o Enem teve o menor número de inscritos. E a redução se deu para quem estuda em escolas públicas. Isso deixa ainda mais difícil a situação de quem já estava com dificuldades financeiras”, apontou Jorge.
Socorro por WhatsApp
É pelo WhatsApp que Ana Paula dos Santos recebe a maioria dos pedidos de ajuda. Fundadora e presidente da ONG Juntos contra a Fome, ela tenta toda semana amenizar a dor de quem não tem o que comer. “Os pedidos de ajuda pelo WhatsApp da ONG aumentaram muito nos últimos meses. A gente tenta ajudar como pode”, falou.
Durante a pandemia, Ana e os voluntários da ONG iniciaram a coleta da xepa da Ceagesp e montaram uma cesta para distribuir para as famílias em situação de vulnerabilidade social da cidade. “O pessoal pede legumes e alimento. De tudo um pouco”.
Carmo Martin Macedo, gerente do entreposto da Ceagesp de Rio Preto, diz que 130 famílias recebem as cestas distribuídas pela entidade às quartas e sexta-feiras. “Oferecemos de 500 a 600 cestas mensais. A gente doa para quem esteja em situação de vulnerabilidade social. É uma cesta com verdura, legumes e folhagem”.
Uma das beneficiárias é Maria da Graça Menezes, de 60 anos. Moradora do bairro Santo Antônio, ela sobrevive com R$ 700 e ajuda de projetos sociais, como da Ceagesp. “Tenho arroz e feijão, porque verdura e carne só com ajuda. Estou à procura de emprego, mas tá difícil. Quero sair desta situação”.
Segundo a secretária de assistência social de Rio Preto, Helena Marangoni, no ano passado, 24.904 cestas básicas foram entregues por meio dos Cras. Já neste ano, entre janeiro a outubro, foram 19.616. “As unidades do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) atendem as famílias oferecendo os serviços e benefícios socioassistenciais. Atualmente são 13 Cras e três Centros de Convivência”.
Além da ajuda governamental, outros projetos sociais também realizam a distribuição de cestas básicas pela cidade. São iniciativas como de igrejas da cidade, do Grupo Espírita André Luiz (Gael), Associação Espírita a Caminho da Luz (Aeluz), Centro Espírita Francisco Cândido Xavier, Instituto As Valquírias, dos grupos Amigos do Bem e Corrente do Bem; e de empresários de Rio Preto e região.