Marcos Alvarez tinha apenas 7 anos em 1970, mas lembra-se muito bem de um costume de sua família naquela época: não torcer pela Seleção Brasileira nas Copas do Mundo.
Apesar da pouca idade, quando garoto Marcos gostava de ouvir os debates políticos que permeavam as reuniões familiares; discussões que enalteciam as ideias de esquerda e rechaçavam o então governo, naquela época comandado pelo general Médici, no auge da repressão da ditadura militar.
“Minha família, que sempre foi de esquerda, tinha essa coisa de não torcer pelo Brasil por causa da ditadura, que naquela época havia abraçado a Seleção Brasileira”, lembra Alvarez, hoje professor universitário e torcedor da Inglaterra. “Eu me lembro de um dos primeiros jogos que assisti, Brasil e Inglaterra na Copa de 70, e gostei muito dos ingleses; até hoje é a seleção pela qual eu torço”, diz ele ao Portal da Band.
A relação entre o então regime militar e a Confederação Brasileira de Desportos (CDB), hoje Confederação Brasileira de Futebol (CBF), nunca foi muito clara, mas alguns indícios chegaram a levantar suspeitas de sua existência, como a troca do técnico João Saldanha, militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), por Zagallo pouco antes de a Seleção desembarcar no México, de onde sairia com o título.
“Existia um acordo racional, entre aqueles que combatiam diretamente o regime, de não torcer pela Seleção por achar que isso favoreceria o governo”, lembra Cláudio Zaidan, comentarista esportivo da Rádio Bandeirantes. Esse sentimento foi potencializado após a mudança de técnico, que preocupou a militância que lutava contra a ditadura na ocasião. Segundo Zaidan, não é possível afirmar, porém, que essa troca se deu por razões estritamente políticas.
“Nos amistosos, [antes da estreia na Copa de 70], a Seleção caiu de rendimento e, para o governo, era interessante ter o time indo bem; se Saldanha continuasse com os bons resultados que apresentou nos jogos eliminatórios, o fato de ele ser comunista talvez fosse tolerado”, ressalta o comentarista.
Para o professor Marcos Alvarez, porém, a situação do país foi determinante em outras Copas também, pelo menos em seu círculo de amigos. “Na Copa de 1982, eu tinha uma amiga na faculdade que admirava Leon Trotsky [intelectual marxista da antiga União Soviética] e torcia contra o Brasil na esperança de que a Seleção perdesse e isso despertasse algo que acabaria em uma revolução no País”, lembra. “Sempre achei isso meio ingênuo, mas até hoje alguns grupos políticos fazem essa vinculação mais direta com o futebol.”
A Copa do Mundo de 2014, que aconteceu no Brasil, é outro exemplo dessa influência política na percepção do evento pelos brasileiros. Antes de seu início, protestos ganharam as ruas pelo País contra gastos para sediar o Mundial em meio a uma recessão econômica com consequências que perduram até hoje. A frase “não vai ter Copa” marcou a ocasião.
“Quando o País está deprimido emocionalmente, [quando] há um desgaste, uma depressão e descrença no Estado e nas instituições, muita gente acaba enxergando a Seleção como uma expressão de tudo isso, até porque o torcer é emocional, não é uma coisa racional”, pontua Zaidan.
Como exemplo mais atual, o comentarista esportivo cita ainda o uso da camisa da CBF nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT). “Agora [a camisa] é vista como uma posição política, embora ela seja usada por décadas sem nenhuma associação do tipo. Mas, como o debate político no Brasil não é profundo, sempre estamos sujeitos a esses simbolismos frágeis.”
Uma camisa para torcer
Frágil ou não, o símbolo que se tornou a camisa da CBF após os protestos pelo impeachment de Dilma afetaram a relação de Viviane Cubas com a Copa do Mundo. “Diferente de outras Copas, essa é a primeira em que eu não comprei nada [para torcer] e não organizei nada para assistir aos jogos”, relata. “E um pouco disso é devido ao momento de crise política que estamos vivendo. Uma vitória do Brasil pode significar um ponto positivo para o governo, uma apropriação maior desse símbolo que hoje, para mim, remete às manifestações. Se antes era uma camisa que me dava orgulho, agora eu olho e me sinto mal.”
Viviane não está sozinha nessa posição. Pela internet, principalmente nas redes sociais, camisas alternativas estão sendo oferecidas para quem quer torcer, mas não quer vestir a camisa da CBF. “Acho muito bacana ter opções para quem quer torcer, embora também considere arriscado usar algumas camisas, porque há pessoas que ficam agressivas quando encontram alguém com posições políticas contrárias, mas, em nome da liberdade de expressão, tudo é válido”, observa Vivi.
Foi para torcer, e também para protestar, que Aline* decidiu confeccionar camisas especiais para esse Mundial. A peça mistura a criação da designer Luísa Cardoso, que elaborou a camisa vermelha com o escudo da CDB de um lado e, do outro, um dos símbolos do Comunismo, a foice e o martelo, com a frase “é golpe no Brasil” na parte de trás.
“A ideia começou em uma mesa de bar com amigos. Queríamos curtir a Copa, mas por causa do estigma deixado pelos protestos pelo impeachment – cujo resultado não concordamos -, ninguém queria usar a camisa da CBF e isso causou um desânimo geral”, contou Aline, que não quis se identificar depois que a CBF notificou a designer Luísa Cardoso sobre a proibição da venda de produtos que levem o nome da instituição.
Para “animar” essa torcida, ela formou um grupo nas redes sociais para receber pedidos dos amigos, e de amigos desses amigos, e passou a confeccionar a camisa para quem estiver interessado. A demanda, porém, cresceu de forma inesperada. “Criei esse grupo há quase duas semanas e já recebi 110 pedidos”, conta. Aline, que já trabalhou com estamparia, não lucra com a produção das camisas, que é feita por uma empresa do ramo. “Eu só repasso a demanda para eles e entrego as camisas para quem comprou. Sou apenas a ponte.”
Uma das “clientes” de Aline, inclusive, está indo para a Rússia neste sábado, 16, a tempo de ver a estreia da Seleção Brasileira, no jogo contra a Suíça no domingo, 17, com a camisa vermelha.
Outra camisa que tem atraído os torcedores que não concordam com as manifestações do impeachment incluem as cores verde e amarelo, mas em vez do escudo da CBF traz a frase “é golpe” como se fosse um grito de “gol” estampada. A bióloga Bruna de Oliveira foi uma das que adquiriram a peça pela internet.
“Eu sempre gostei da Copa por causa do clima que contagia as pessoas e pelos eventos que acontecem para assistir aos jogos; também gosto do tema verde e amarelo que toma conta do País nessa época, mas está difícil usar a camisa da CBF por aí. Eu não quero correr o risco de ser confundida com alguém que está pedindo intervenção militar ao invés de estar torcendo pela Seleção”, diz Bruna à reportagem. “Quando eu vi essa camisa, achei a ideia genial e mandei fazer, com algumas amigas. Dessa forma, a gente não vai deixar de curtir a Copa esse ano.”