Pedacinhos do Terceiro Reich estão à venda em toda parte. Há quem argumente que colecionar uniformes, medalhas, moedas, selos e fardamento nazistas pode ter objetivos históricos – e não configuram apologia. Mas se o objetivo é estudo, não bastariam livros e documentários? É preciso ter na estante, por exemplo, um suvenir da SS, o esquadrão de terror nazista?
Falando ao DCM, Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba, afirma que a compra e venda de tais produtos online “converteu-se numa plataforma aberta, e por vezes disfarçada, para aqueles que buscam a apologia ao nazismo”, além de ser, ao mesmo tempo, uma agressão à memória das vítimas.
“Todos sabemos que é possível fazer apologia ao nazismo sem o uso da suástica”, diz Reiss, que também é curador do Memorial do Holocausto do Rio. Existe outro em São Paulo.
“Esse aquecimento da memorabilia nazista é assustador, passados 90 anos do Nacional Socialismo”, diz a advogada Milena Gordon Baker, autora do livro “Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro”, uma das mais respeitadas especialistas na área jurídica no estudo do Holocausto. “É um comércio visivelmente perverso e não compreendo como alguém que não é nazista tenha esse tipo de objeto em sua casa.”
Ela conta que nos Estados Unidos, onde a primeira emenda da Constituição garante genericamente o “direito de se reunir pacificamente”, há grandes feiras de militaria, onde o filé são os objetos nazistas. E nada pode ser feito. No estado sulista do Kentucky, conhecido pelo racismo, conta ela, há uma grande feira onde vende-se todo tipo de artefatos – até brioches nazistas para sutiãs, inspirados em Eva Braun, amante de Hitler. Segundo o jornal The New York Times, o mercado de leilões de artefatos nazistas movimenta 100 milhões de dólares por ano por lá.
Há coisas mórbidas, como o sujeito que está vendendo, no Mercado Livre, por 300 reais, quatro fotos tiradas dentro de um campo de concentração na Alemanha, não identificado. “Fotos tiradas pelo meu pai na Alemanha no campo de concentração, em 1960”, escreveu, prosaicamente, o vendedor. Nos locais, vazios, é possível ver filas de crematórios e construções com chaminés.
A guerra tinha acabado, mas é uma relíquia bizarra se pensarmos nos milhões de judeus que morreram no holocausto, muitos em campos de concentração como Auschwitz, em câmaras de gás como aquelas, além de fome ou por doenças. O DCM entrou em contato, por mensagem, único meio possível, com o vendedor, via Mercado Livre:
– Você sabe que são fotos tiradas num campo de concentração nazista. Mostram fornos crematórios e chaminés. Nesses campos morreram milhares de judeus. Queria entender o seu interesse em vendê-las, questionei.
– Meu interesse é vender, somente o dinheiro mesmo, respondeu.
-Isso pode até te render uns trocados, mas não é falta de humanidade?, retruquei.
Não houve resposta. Fui bloqueado.
Vendem-se instrumentos médicos e cirúrgicos pilhados de algum hospital militar no eBay. Um dos mais inusitados coloca na prateleira, por 100 dólares, (a descrição é sempre do vendedor) “tubos nazistas Luftwaffe Eigentum Pervitin” – traduzindo, tubos (supõe-se vazios, mas sabe-se lá) das famosas metanfetaminas da Força Aérea nazista. Hoje sabe-se que soldados – e o próprio Führer – usaram quantidades cavalares da droga. Há também muitas seringas e estranhos objetos cirúrgicos. A Alemanha fazia, na época, experimentos humanos abomináveis para tentar provar a teoria da superioridade racial ariana.
Quem quiser pode adquirir, no Mercado Livre, uma “linda série completa” (descrição do vendedor) de selos da Africa Oriental Italiana em homenagem a Benito Mussolini e Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial”, da época em que as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) dominaram grande parte da Europa, África, Ásia e ilhas do oceano Pacífico. O preço dos selos? 600 dólares. Já um “lote com 8 selos da Alemanha Terceiro Reich, 1943, sem carimbo”, é uma relíquia cotada a 256 dólares.
No Mercado Livre você compra “Moeda da Alemanha Nazista de Prata” – repare que o nazista é sempre destacado no anúncio, nunca apenas alemão ou da Segunda Guerra Mundial, seu grande chamariz- por 1 500 reais. O comércio de filatelia e numismática é bem comum. A Shopee vende moedas alemãs da época do nazismo. É só escolher. Uma moeda “Alemanha Nazi”, como é descrita, de 10 reichs, de 1940, sai por 48 reais.
“Essa ideia de colecionismo, de comprar e guardar pedaços de uma guerra terrível dentro de casa, com toda sua carga emocional, sua memória pesada, essa memorabilia de uma história abominável, não me desce”, diz Reiss, que sugere a quem, por herança ou outro motivo, tem objetos nazistas em casa, simplesmente doe – ao próprio Museu do Holocausto, ou instituições e universidades, onde terão seu contexto histórico explicado.
Exemplo: 100% do acervo do Museu do Holocausto foi doado, não só por familiares e sobreviventes. Um consultor de marketing, que preferiu o anonimato, foi direto: “O nazismo, para parte da sociedade, além de objeto de culto, é também inspiração para a moda, sendo reciclado como qualquer outra ideia”. E nem estamos falando do passado, como mademoiselle Gabrielle “Coco” Chanel, que, hoje se sabe, era antissemita e, pior, espiã nazista.
Em 2018, a marca catarinense Lança Perfume foi acusada de fazer apologia ao nazismo em sua coleção de inverno. Com o tema “Uma Noite em Berlim”, as peças traziam referências do uniforme militar alemão usado durante a Segunda Guerra Mundial, além de símbolos como a Cruz de Ferro, condecoração nazista. A LaModa – dona da marca Lança Perfume – fez contorcionismos para tentar justificar o injustificável diante dos consumidores. Em 2014, a Zara vendeu um pijama listrado com uma estrela de Davi amarela. Sete anos antes, a mesma rede de lojas vendeu uma bolsa feminina com uma suástica bordada.
O Mercado Livre vende um livro editado bem depois das guerras mundiais, com 40 páginas, da “Mais completa compilação de uniformes do Reich na Segunda Guerra Mundial”, incluindo o uniforme do próprio Fuhrer, e detalhes em que aparecem a Cruz de Ferro e a suástica – símbolos proibidos legalmente no país. Pela bagatela de R$ 159 reais.
Milhões de colecionadores organizam os mais diversos tipos de acervos, de selos a carros, de bonecas e sacos de vômito – sim, eles existem. A apologia ao nazismo, comercializando seus símbolos, como a suástica, ou fazendo propaganda desse regime, é crime previsto em lei no Brasil, com pena de reclusão. A lei, porém, não avançou. Já o Código Penal alemão, para lembrar onde tudo começou, é detalhista, e proíbe difundir, produzir, comerciar ou disponibilizar publicamente materiais de propaganda de “organizações anticonstitucionais”, ou materiais de propaganda “que, por seu conteúdo, têm como finalidade perpetuar” os objetivos “antiga organização nacional-socialista” – em outras palavras, o antigo Reich.
Na Argentina, há alguns anos, artefatos nazistas foram encontrados escondidos em um casarão nos arredores da capital, Buenos Aires. Quase uma centena de objetos compunham a coleção, incluindo um busto de Adolf Hitler, uma estátua da águia germânica sobre uma suástica e até instrumentos de medição do crânio. Legítimos, os artefatos teriam pertencido a oficiais do exército nazista na época da Segunda Guerra, que fugiram em peso para a Argentina.
No Brasil já foram estourados bunkers de memorabilia nazistas, mas o mais recente e barulhento foi uma certa Panzer Militaria, que hoje, pelo Google, se diz localizado na “Base militar em Blumenau, em Santa Catarina”. Fato é que, depois de muito lucrar com a memória do nazismo, a loja do Panzer há dois anos sofreu uma batida da Polícia Civil de Santa Catarina. A lojinha em Timbó era o mall do cidadão de bem: roupas, quadros e canecas com imagens de Adolf Hitler, alguns de seus principais chefes militares e insígnias nazistas.
As canecas de chope tinham o símbolo da SS. O principal era um quadro com o busto do próprio Adolf Hitler. Todos, claro, ali, se disseram “colecionadores” de peças históricas. Não se sabe se voltou a funcionar, mas parece que sim. No Instagram, que já abre com um busto de Hitler, informa-se aos interessados que “uma loja online está divulgando e comercializando produtos relacionados ao nazismo.” E dá pistas. Curiosamente, eles informam que alguns produtos “possuem uma leve edição para esconder a imagem da suástica” – justamente o que é expressamente proibido na lei nacional.
Uma das maiores referências em pesquisa sobre o neonazismo no Brasil, a antropóloga Adriana Dias, que faleceu recentemente, revelou que, em 2021, existiam pelo 530 núcleos extremistas no Brasil, a grande maioria neonazistas. Um crescimento de mais de 270% desde seu último trabalho, em 2019. “Esse é sim um problema sério, até porque no Brasil os supremacistas são antes de tudo racistas. É uma bomba-relógio”, resume o coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba.