Um levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV/Dapp) nas redes sociais, feito com exclusividade para O GLOBO, mostra que a carne e o café se tornaram os principais símbolos das frustrações dos brasileiros com a perda do poder de compra.
Os dados dão a dimensão do impacto da inflação sobre o humor do brasileiro a poucos meses das eleições.
Entre 29 de março e 30 de junho, o Twitter registrou, sozinho, 1,94 milhão de posts sobre a inflação. A alta dos combustíveis rendeu 862,6 mil interações, 44% dos tweets sobre a pressão inflacionária, aí incluídos diversos produtos, como gasolina, diesel e o botijão de gás.
Outras 447,1 mil postagens tratavam do preço dos alimentos no país e à carestia, segundo o mapeamento da Dapp. Nesse universo é que a carne e o café se destacam de outros produtos.
Neste mesmo intervalo, temas econômicos somaram 4,7 milhões de tuítes, bem mais do que outros assuntos que estavam na ordem do dia, como educação, com 1,7 milhão, e meio ambiente, com 1,5 milhão — impulsionados pela prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e pelos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips na Amazônia. No caso da carestia, porém, a conversa nas redes é constante.
Os dados captados nos ambientes digitais são um termômetro afiado das tendências de opinião, explica o sociólogo Marco Antonio Ruediger, que coordenou o levantamento da Dapp.
“O que se fala nas redes e vai influenciar as pesquisas de opinião adiante, o que está dominando as conversas hoje, é o impacto da inflação na vida das pessoas. Esses dados remetem ao retrocesso de ganhos que as pessoas tiveramafirma Ruediger.
As campanhas dos principais candidatos sabem da importância desses dados, e por isso monitoram permanentemente não apenas as postagens, mas também os comentários e conversas sobre os posts, para orientar suas estratégias.
Não à toa, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro têm feito constantes publicações nas redes sobre inflação e alta de preços — o presidente responsabilizando fatores externos a seu governo, como a guerra na Ucrânia, os governadores ou a gestão da Petrobras, e Lula remetendo aos tempos em que era presidente.
“Eu soube que está difícil comer churrasco no Rio Grande do Sul com o preço da carne. O povo vai voltar a comer uma picanha, uma costelinha, para os gaúchos poderem voltar a fazer o seu churrasco”, publicou o petista no fim de maio.
Pelo levantamento feito pela Dapp, a carne foi o produto mais citado no Twitter entre os que reclamaram da alta de preços: são 84,1 mil posts entre março e junho. Já o café é o tema de 19,5 mil tuítes.
Os dois produtos estão entre os que tiveram as maiores altas. Nos últimos 12 meses, o preço do café subiu quase 66%. Foi a segunda maior alta, depois do tomate, segundo o boletim da inflação da cesta básica elaborado pelo Departamento de Economia da PUC-PR. Já a carne, tomando como base o contrafilé, subiu 12,92% no período.
Para Ruediger, o fato de que tanto a carne como o café estão relacionados à socialização ajuda a aprofundar o mau humor nas redes.
“O café está na mesa da família que se reúne todas as manhãs, é consumido pelo sujeito que para no boteco para tomar uma média com pão na chapa antes de ir para o batente. É um produto profundamente associado ao trabalho, à produtividade e à rotina da população. Já a carne está no churrasco que agrega as famílias e os amigos depois da pelada de domingo”, ressalta o pesquisador.
A maioria dos comentários sobre a carne aborda a indignação com o preço e a nostalgia dos tempos em que era possível fazer um churrasco com a família.
“Com o preço que tá a carne, fazer um churrasco na Sexta-Feira Santa não é mais pecado, mas um milagre”, ironizou um perfil no Twitter. “Domingo é dia de churrasco. Só se for de calango, porque o preço da carne…”, brincou outro, ao reproduzir uma ilustração de São Jorge assando um dragão em uma fogueira.
O preço do café em pó nas gôndolas dos supermercados também virou meme. “A pessoa que toma café requentado no micro-ondas sabe o preço que tá o café, isso sim”, brincou um usuário pernambucano. “Comprei um um pacote de café do mais sem graça, só para ter em casa, e não quis nem olhar o preço para não sofrer”, tuitou outro.
Até o início da pandemia, a manicure Daniele dos Reis, 46 anos, moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, costumava fazer de dois a três churrascos por mês no quintal de casa com parentes e amigos. Mas teve de cortar esse hábito.
“Para fazer um churrasco você precisa de uma carne com um pouco mais de qualidade, não pode ser qualquer uma. Aqui em casa somos quatro. Aí se chamar um irmão, um cunhado ou a nora, acaba sendo uma quantidade grande, mesmo para um churrasco simples de fim de semana. E não adianta cada um trazer uma carne porque muitas vezes também fica pesado para o orçamento da pessoa, de tão cara que está”, afirma Daniele.
Ela teve de reduzir até mesmo o consumo de carne no dia a dia:
“Comíamos carne vermelha duas vezes por semana. Passamos para o frango, mas os preços também subiram muito”.
Para a família de Daniele, até mesmo partes do boi menos nobres passaram a pesar no orçamento:
“Aqui em casa temos uma cultura mais nordestina no prato, gostamos de comer bucho, mocotó e rabada. Antigamente o quilo de mocotó de boi saía a R$ 5 ou R$ 7. Agora você não consegue achar a menos de R$ 15. Às vezes por R$ 18, já vi até por R$ 25!”.
O período do levantamento coincide com os impactos da invasão da Ucrânia pela Rússia, que levaram a uma alta acentuada no valor do barril de petróleo e de fertilizantes.
A forte desvalorização do real frente ao dólar, o aumento do preço das commodities e a seca no Brasil juntaram-se a esse cenário, afetando a produção de alimentos e o setor energético e prejudicando principalmente a camada mais pobre da população.
Um estudo divulgado mês passado pela FGV mostra que o número de brasileiros abaixo da linha de pobreza foi o maior da série histórica iniciada em 2015.
Mesmo os setores mais abastados, que haviam conseguido economizar em gastos com combustíveis, lazer e educação na pandemia, em razão das medidas de distanciamento social, também já sentem os efeitos da inflação no dia a dia.
Para André Braz, economista do Ibre/FGV, essa tempestade perfeita para o governo se reflete nos dados apurados pelo Dapp nas redes.
“O governo não soube, até o momento, se comunicar com a população para atenuar o desgaste político”. avalia o economista.
Segundo ele, se os fatores externos que influenciaram a alta de preços fossem bem explicados à população, poderiam ao menos atenuar a percepção de que a culpa da inflação é do presidente.
Ruediger concorda com o prognóstico.
“O questionamento do brasileiro que está frustrado com os preços vai direto ao ponto: como a gestão pública está trabalhando para aumentar minha condição de sustento? Não tem como reverter isso (indignação) em três meses (até o primeiro turno” avalia o sociólogo da FGV. “Não tem um caso eleitoral no mundo em que a inflação não jogou um peso muito grande contra o presidente incumbente quando ela está crescendo”.