A violência contra os povos indígenas brasileiros aumentou no ano de 2020, mesmo no contexto da pandemia de covid-19, aponta um relatório divulgado nesta quinta-feira (28) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Ao longo do ano passado 182 indígenas foram assassinados, o que representa uma alta de 37% em relação aos 133 assassinatos registrados em 2019.
Para 2020, o relatório registra ainda 16 mortes por homicídio culposo, 17 ameaças de morte, 34 ameaças de outros tipos, 13 tentativas de assassinato, cinco casos de violência sexual, oito ocorrências de lesões corporais dolosas e 15 casos de racismo e discriminação étnico cultural.
No total, foram 304 casos de violência praticados contra a pessoa indígena no ano passado, 10% a mais do que o apontado no relatório anterior, que compreendia o ano de 2019, aponta o Cimi, instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Conforme destaca o sumário executivo do documento, “o cômputo geral das categorias violência contra a pessoa e violência contra o patrimônio indígena em 2020 foi o maior dos últimos cinco anos”.
“As violências praticadas contra os povos indígenas e seus territórios são condizentes com o discurso e as práticas de um governo que tem como projeto a abertura das terras indígenas à exploração predatória, atuando no sentido de disponibilizar essas áreas para a apropriação privada e favorecendo os interesses de grandes empresas do agronegócio, da mineração e de outros grandes grupos econômicos”, diz o texto.
Mais de 1.200 assassinatos desde 1985
A maior incidência de assassinatos de indígenas ocorreu em Roraima, com 66 casos, seguido por Amazonas (41 ocorrências) e Mato Grosso do Sul (34).
O relatório lembra o caso conhecido como “massacre do Rio Abacaxis”, ocorrido no Amazonas em agosto do ano passado, resultando em provavelmente oito mortes depois de conflito com turistas que ingressaram em território protegido para praticar pesca esportiva.
“Uma operação da polícia militar no local resultou na morte de dois indígenas do povo Munduruku e de pelo menos quatro ribeirinhos, além de outros dois desaparecidos e diversos relatos de violações de direitos humanos praticados pelos policiais”, afirma o texto.
O relatório também aponta que quatro indígenas Chiquitano foram mortos por policiais do Grupo Especial de Fronteira (Gefron) quando estavam caçando numa área próxima à sua aldeia em Mato Grosso, em agosto do ano passado.
Dados compilados a partir de 1985 registram um total de 1.236 assassinatos de indígenas no Brasil.
Invasão de terras
O patrimônio indígena também tem sofrido crescentes ameaças. De acordo com o levantamento, houve 1.191 casos de violência do tipo ao longo de 2020, de invasões a territórios indígenas a omissão e morosidade na regularização de terras, passando por exploração ilegal de recursos.
As chamadas invasões possessórias vêm aumentando ano a ano. Foram 263 casos em 2020, frente a 256 no ano anterior. Se comparado com 2018, o salto foi gigantesco: hoje são 141% a mais do que os 109 casos daquele ano. “Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados”, destaca o Cimi.
“As invasões e os casos de exploração de recursos naturais e de danos ao patrimônio registrados em 2020 repetem o padrão identificado no ano anterior. Os invasores, em geral, são madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e grileiros, que invadem as terras indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios inteiros em busca de ouro e outros minérios, além de desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens”, contextualiza a instituição. “Em muitos casos, os invasores dividem a terra em lotes que são comercializados ilegalmente, inclusive em terras indígenas habitadas por povos isolados.”
“Opção política”
Para o Cimi, o quadro é resultado da “opção política do governo federal” de Jair Bolsonaro, que assumiu em 2019. E isso estaria “evidenciado pelos inúmeros discursos proferidos pelo próprio presidente da República e por medidas práticas”.
Entre essas medidas, o relatório cita o Projeto de Lei 191, apresentado pelo governo ao Congresso em 2020, e a Instrução Normativa 9, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em abril do mesmo ano. O primeiro prevê a abertura das terras indígenas para a mineração, a exploração de gás e petróleo a a construção de hidrelétricas, entre outros. Já a norma da Funai passou a permitir a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas.
Paralisar a demarcação de terras indígenas foi bandeira de campanha de Bolsonaro. Para o Cimi, tornou-se “uma diretriz de seu governo”. Há uma imensa demanda reprimida nos corredores da burocracia estatal. Das 1.299 terras indígenas no Brasil, 832 seguem com pendências para a regularização.
Coordenador da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), o pedagogo Alberto Terena afirma que o momento é de intensa agressividade e violência contra os povos indígenas. Segundo ele, há uma intimidação do governo junto às lideranças e um cenário de “violência institucionalizada”.
“Temos também o avanço do garimpo e do desmatamento, com parentes sendo mortos. É triste para todos nós. E sabemos que há um incentivo desse desgoverno para continuar tirando vidas do povo indígena. É cruel”, diz ele.
Pandemia e descaso governamental
Outras mortes trágicas são evidenciadas pelo relatório. Em 2020 houve o registro de 110 suicídios de pessoas indígenas e 776 óbitos de crianças de até cinco anos. Além disso, a pandemia de covid-19 tornou-se uma nova chaga para os povos originários.
“Em muitas aldeias, a pandemia levou as vidas de anciões e anciãs que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos, representando uma perda cultural inestimável, não só para os povos indígenas diretamente afetados, mas para toda a humanidade”, comenta o Cimi, que cita dados levantados pela Apib para embasar o cômputo de mais de 43 mil indígenas contaminados pela covid-19, com pelo menos 900 mortes pela doença, somente no ano de 2020.
Pesquisador e professor na Universidade Federal do Oeste do Pará, o promotor de Justiça Tulio Chaves Novaes acredita que essa violência é resultado de um processo histórico de etnocídio, que gradualmente visa ao apagamento das culturas e tradições desses povos originários.
“Diferentemente do genocídio, trata-se de um processo lento que se vale principalmente da violência simbólica, embora haja também um coeficiente de violência física”, argumenta. “Vem sendo praticado diariamente contra esses povos.”
Para o jurista Guilherme Assis de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e consultor de organizações internacionais, os dados do relatório Cimi “não são nenhuma surpresa”, uma vez que “a violência contra os povos indígenas tem aumentado sob o governo Jair Bolsonaro”.
“O Brasil se transforma em um Estado bandido. Essa violência contra os povos originários não é um acaso: faz parte de uma política negacionista que está destruindo o país”, diz ele. “Esse governo definitivamente não é democrático e não prima pelo respeito aos direitos humanos de todos os grupos e principalmente os mais vulneráveis.
“Os povos nativos padecem porque a sua proteção implica restrição à exploração desimpedida do ambiente. Não é outro o motivo do desprezo com que são tratados pelo governo”, analisa o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para ele, o Brasil está reencontrando, “sob Bolsonaro e os que o apoiam e patrocinam, seu passado e o passado colonial da América, terra de onde as coisas saem para acumular fora”. “Um olhar retrospectivo sobre este governo, desde o seu discurso de posse, passando pelas manifestações de seus ministros, demonstra que a violência de que são vítimas os povos indígenas é parte de um cálculo”, completa.
O relatório do Cimi
O relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil foi publicado pela primeira vez em 1996 e passou a ser um levantamento anual em 2003. Desde 2015, é divulgado também em inglês, facilitando a repercussão internacional.
Para o promotor Novaes, o documento tem “função instrumental”. “Serve como ferramenta de combate a esse processo de violência contra essas populações originárias, fomentando as informações necessárias para os órgãos de controles iniciarem o processo de verificação dos direitos desse povo, inclusive do ponto de vista judicial”, comenta.
A DW Brasil procurou os ministérios da Justiça e Segurança Pública, do Meio Ambiente e da Saúde mas não obteve qualquer posicionamento deles até o fechamento desta reportagem.