quinta, 14 de novembro de 2024
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Bolsistas criam página contra preconceito em universidade carioca

Gabriel Gomes, Lucas Clementino e Michelle Egito (da esq. para a dir.), três dos oito integrantes do “Bastardos da PUC-Rio”; para eles, alunos bolsistas precisam entender que universidade também é…

Gabriel Gomes, Lucas Clementino e Michelle Egito (da esq. para a dir.), três dos oito integrantes do “Bastardos da PUC-Rio”; para eles, alunos bolsistas precisam entender que universidade também é “100% deles”.

“Você é pobre? E bolsista? Não sabia que a PUC misturava o tipo de gente que estuda Relações Internacionais, até porque é um curso que exige inglês, né?”

Foi assim que um aluno da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a PUC-Rio, bolsista do ProUni e morador de um bairro do subúrbio carioca, diz ter sido recebido por um colega no primeiro semestre de aulas, durante um debate sobre cotas raciais.

“Eu não consegui dizer nada, e meus colegas também não disseram nada. Foi a primeira de muitas vezes em que pensei em largar a PUC”, conta o estudante, hoje formado pela tradicional universidade privada carioca, considerada de elite – mas onde 51% dos 12.760 alunos são bolsistas.

O relato do aluno está na página “Bastardos da PUC-Rio”, que em menos de um mês já tem 6 mil curtidas no Facebook.

Alusão ao termo “filhos da PUC”, usado pelos alunos e professores da instituição, o nome da página foi escolhido pelo grupo justamente para deixar claro que eles não se sentem acolhidos nem tratados como iguais aos estudantes pagantes.

Todos os depoimentos são anônimos.

“Tudo começou num grupo de WhatsApp que a gente criou justamente para falar sobre esse tipo de humilhação e discriminação por sermos pobres, pretos e de periferia ou favela”, conta Gabriel Gomes, de 22 anos, aluno do 7º período do curso de Publicidade e bolsista do ProUni.

Com o acúmulo de relatos e desabafos, Gomes juntou-se a outros sete colegas para criar a página, que vem recebendo uma média de três relatos por dia. Desde a criação, no início de setembro, o grupo já recebeu 47 depoimentos, dos quais publicou 27.

Segundo um levantamento informal com 31 dos estudantes que enviaram suas experiências pessoais, a maioria tem entre 17 e 24 anos e leva entre duas e três horas para chegar ao campus, na Gávea, bairro nobre da Zona Sul do Rio.

Nenhum tem carro, e grande parte é morador de favela ou de bairros da periferia da Zona Norte e da Baixada Fluminense – uma realidade que, de acordo com os alunos, incomoda professores e colegas.

“Mundos diferentes”

Segundo o grupo, há professores que logo no início do semestre fazem questão de identificá-los e destacá-los.

“Quando o professor pergunta diante de toda a turma onde você estudou no Ensino Médio, em que bairro você mora, a profissão dos seus pais ou diretamente se você é bolsista, é óbvio que isso é uma forma de discriminação. Na maioria das vezes eu sou o único que estudou em escola pública, de uma sala inteira”, diz Gomes.

Um dos relatos com mais repercussão na página, com mais de 3 mil curtidas, é o de uma aluna do curso de Design, bolsista do ProUni.

“Tive a infelicidade de me matricular em uma disciplina cuja professora não gostava de pobre. Isso ficava evidente nas muitas piadinhas que ela fazia sobre empregadas domésticas”, conta.

Para Michel Silva, os colegas que vivem em outra realidade social: “Para mim, “eles” são as pessoas inseridas numa bolha social muito difícil de furar. É como se a gente fosse uma agulha tentando furar. Eu sou essa agulha.”

“No primeiro dia de aula, informei a ela que eu sempre chegaria atrasada, porque eu saia do trabalho e não conseguia chegar no início da aula. A partir de então virei piada. As piadas me incomodavam e eu tentava fugir do campo de visão dela durante as aulas, e quanto mais eu me escondia, mais ela me percebia e chamava a atenção pelo fato de eu estar excluída da turma”, completa.

Em outro relato que gerou muitos comentários, uma aluna de Jornalismo que estagiou na TV universitária afirma ter sido alvo de racismo.

“Sou negra e na época meu cabelo era relaxado, o que significa que toda vez que ia gravar tinha que fazer chapinha. Morando longe e acordando cedo, nem sempre dava tempo ou tinha ânimo. Uma vez, quando não tinha que gravar nada, minha chefe me falou: Por que está com esse cabelo horrível? Se eu precisar te mandar entrevistar o reitor, não tem como desse jeito! Tem que fazer chapinha! Isso na frente de outras pessoas.”

Para Lucas Clementino, de 19 anos, estudante do 1º período de Arquitetura e bolsista do ProUni, há um “ciclo vicioso” na universidade.

“Aqui é muito comum que ex-alunos se tornem professores. É um ciclo. Eles acham que a PUC pertence 100% a eles, à classe social deles. Eles vêm a gente como a minoria, como os invasores, e quando se tornam professores estimulam isso nos alunos e legitimam o preconceito”, afirma ele, integrante do grupo.

Em outro depoimento enviado à página, uma aluna diz ter ouvido de uma colega um comentário discriminatório porque não tinha um smartphone moderno.

“Tive um trabalho em conjunto e meus colegas montaram um grupo no WhatsApp. Pedi pra fazermos isso no Facebook, porque meu celular era bem antigo e não tinha esse recurso. Eu não tinha grana pra comprar outro melhor e isso nem me fazia falta na época. Uma menina olhou pra mim e disse “sai da caverna, sua louca! Hoje em dia qualquer um consegue comprar um iPhonezinho, vai!”. Na época, senti certa pena de mim. Hoje, sinto muita pena dela.”

“Eles” x “Nós”

Para os criadores do grupo, comentários que expõem as diferenças de classes sociais e poder de consumo passam despercebido entre “eles”, mas têm efeito muito negativo sobre os alunos bolsistas, que se sentem discriminados por causa da maneira como se vestem, pelo bairro onde moram, pelas origens ou pela cor da pele.

Questionados sobre quem seriam “eles”, o grupo diz tratar-se dos estudantes que se sentem “100% pertencentes à universidade, geralmente brancos, de classe média alta, e moradores de bairros nobres do Rio”.

Para Michel Silva, “eles” são os colegas que vivem em outra realidade social. “Para mim, “eles” são as pessoas inseridas numa bolha social muito difícil de furar. É como se a gente fosse uma agulha tentando furar. Eu sou essa agulha”, diz.

Questionados sobre a perspectiva de que entre os alunos pagantes há provavelmente pessoas de diversas origens, os integrantes do grupo argumentam que, apesar das diferenças, “eles” pertencem ao “mesmo mundo”.

“Há os muito ricos, que moram em mansões com elevador. Há a classe média, mas que pode pagar a mensalidade. Tem diferenças, claro, mas eles falam a mesma língua, têm as mesmas referências e pertencem ao mesmo mundo, que é muito diferente do nosso”, diz Michelle Egito, aluna do 7º período de Cinema e bolsista do ProUni.

Reunião

Conforme a página no Facebook ganha repercussão, o grupo espera resultados práticos, como campanhas de conscientização promovidas pela Reitoria e punições a professores denunciados. Mas também teme retaliações.

“Nos últimos dias, ouvi de um professor em sala de aula que “agora não se pode mais falar qualquer coisa, senão cai naquele site dos Bastardos”. Já é um começo. Queremos que os próximos bolsistas saibam que podem ser acolhidos e que também têm direito de estarem aqui”, diz Gomes.

Na última terça-feira, o grupo foi convidado pela Vice-Reitoria para uma reunião.

“Apresentamos demandas, mas não houve tempo para tocar no tema específico das denúncias contra professores. É algo que ainda vamos levar adiante, porque precisa acabar essa cultura da impunidade, que legitima o preconceito”, diz o estudante.

Procurada pela BBC Brasil, a PUC-Rio confirmou a reunião e disse que “as demandas serão analisadas” e que “até o momento não foram apresentadas denúncias formais contra professores”.

“A PUC-Rio sempre apura qualquer denúncia que chega pelos meios que os alunos têm para fazer essas queixas, como a ouvidoria da universidade por email, pessoalmente, ou por telefone. A cada seis meses os alunos bolsistas têm contato com a coordenação de bolsas, quando ocorre a renovação, e há oportunidade para denúncias. Além disso a Reitoria está sempre aberta a recebê-los”, diz a nota.

Sobre punições a professores, a universidade diz que os casos denunciados são investigados e que no passado já houve punição formal, mas não soube precisar se tratou-se de uma advertência ou de medidas mais severas, como demissão.

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