Em visita a um amigo, vitimado por acidente de trânsito, ouvi o relato da saga acidente-cirurgia-tentativa de repouso. Ao perguntar sobre o ocorrido, prática de toda visita, por curiosidade apenas ou para saber mais sobre a extensão dos danos materiais, físicos e emocionais, ele iniciou seu relato, obviamente pelo começo, contando a história, certamente pela centésima vez, em penalidade imposta às vítimas.
Pessoa de poucas palavras, assim, foi suscinto em contar sobre a colisão em seu automóvel, o braço quebrado, o atrevimento em colocá-lo na posição original e o consequente desmaio pelo autoflagelo. Acordou no hospital com a notícia de necessária cirurgia para restaurar o osso quebrado.
Com sorriso tímido, demonstrando certo constrangimento, foi além do resumo de sua história inicial e, excepcionalmente, quase pedindo desculpas pelo que iria descrever, acrescentou outros capítulos à narrativa, finalizando com uma comparação que, para ele, parecia estar entre o impensável e a realidade e, para mim, certamente alicerçada na sabedoria cotidiana da observação e na sinistra transformação da civilização humana.
O capítulo seguinte conta as horas passadas na antessala de cirurgia do hospital para onde foi encaminhado pelo serviço de atendimento móvel de urgência após o acidente. Enquanto me contava a história, ia criando na minha imaginação cenas que me levaram aos corredores do hospital. Por um instante, senti até o frio do ambiente. Aliás, gostaria de saber por que os corredores dos hospitais são tão gelados, enquanto os quartos são quentes.
Antes de prosseguir, abrirei parênteses no reconto para fazer uma observação sobre um fato importante na vida de nosso protagonista. O ambiente hospitalar causa-lhe angústia, quase fobia, em razão de sucessivas idas e vindas de seu pai ao hospital, cujo alcoolismo foi causa para procedimentos cirúrgicos, dias na UTI, internações e permanência naquele ambiente como acompanhante, até o dia da notícia do falecimento do pai, em uma daquelas salas insípidas, justamente quando não a esperava, dentre todas as outras vezes em que estava pronto para ouvi-la.
Assim, aguardava na antessala o momento da cirurgia. Porém, não bastasse a angústia da espera, que se estendeu por mais duas horas, também as emoções que transpassavam seu corpo de uma ponta a outra e os infinitos pensamentos que percorriam sua imaginação, contou-me em detalhes todo descaso e indiferença sofridos, como fosse um objeto qualquer de decoração da antessala.
No tumultuado local, além dele, aguardavam deitadas duas parturientes e alguns outros casos cirúrgicos, somados à turba de médicos, enfermeiros e auxiliares diversos. Segundo relatou, permaneceu por aquelas horas estirado na maca ouvindo todo tipo de palavrões, casos amorosos, obscenidades, gente cantarolando, funcionários insatisfeitos reclamando da direção e gemidos inúmeros. A ele lembrou o purgatório de Dante. Quem sabe a sala de cirurgia não seria o círculo superior.
O físico deu sintomas, avisou que não estava bem. Pediu ajuda aos transeuntes, até que alguém veio acudir. Esse chamou auxílio médico e logo veio um medicamento. A enfermeira com seringa na mão achou falta do braço de apoio da maca. Estava faltando. Tentaram improvisar com o pedaço de madeira escorado no canto da sala. Não deu. Então aproximaram um suporte de braço para injeção que, de tão enferrujado, o paciente teve mais medo de contrair tétano que dá agulha enorme que rasgaria seu braço.
Em alguns minutos veio a calma, depois a sonolência. Antes de apagar totalmente e acordar só depois da cirurgia, veio a sua mente uma cena inusitada. Lembrou de uma visita a trabalho em uma fazenda onde as vacas que estavam para parir, aguardavam o momento da concepção em um galpão enorme, bem ventilado, aos cuidados de uma dúzia de veterinários, andando entre os animais em completo silêncio, observando qualquer fator anormal para que pudessem prestar auxílio.
Não bastasse toda calmaria, sombra e água fresca, ainda podia-se ouvir por todo local o som de música erudita, em volume ambiente, estimulando a tranquilidade e o relaxamento das mães-vacas, um legítimo ansiolítico natural. Foi nesse momento que o acidentado quase me pediu desculpas pela comparação.
Achei a relação entre as cenas vividas indefinidamente oportuna. Parecença, não fossem opostas. Tratar bem os animais está em alta, é moda e modo de viver atualmente. O humano está perdendo valor. O homem dormindo na rua e o animal repousando no apartamento. Ao primeiro, desprezo e chão frio, ao outro, colchão e brio.
Foi então que pensei em lançar uma campanha para melhorar o atendimento aos clientes e o trato às pessoas. Proporcionar aos humanos os mesmos cuidados dispensados para os animais. Humanização abaixo de tudo, animalização acima de todos.
Um movimento para que sejamos tratados tão bem quanto são os animais. Quem sabe as coisas melhorem e deixemos de lado as diferenças evolutivas. Me parece racional. Ou deveria dizer irracional, a fim de buscar empatia com nossos companheiros animais.
Resolvido. O tema da campanha será “Animalização para a civilização”. Peço seu irrestrito apoio, estimado leitor. Não devemos pensar somente no interesse próprio, mas também em benefício dos outros seres humanos que precisam de respeito, afeto, cuidado, carinho, amor e, por que não, um cantinho aquecido e refeições diárias. Vamos divulgar: #animalizaçãopracivilizacao. Compartilhe.
Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com