A síndrome do pequeno poder é entendida como uma atitude de autoritarismo de um indivíduo que, ao assumir poder, usa-o de forma absoluta, arbitrária, despótica e não se preocupa com as consequências que seus atos venham a ocasionar a outros indivíduos. Trata-se de um transtorno de comportamento individual que mina as relações sociais e rompe as possibilidades de se estabelecer convivência, tendo-se em vista que o indivíduo dá primazia à satisfação pessoal de forma arrogante, autoritária, abusiva (MARCARINI, 2017).
Segundo Saffioti (1989), a síndrome do pequeno poder reflete um problema social e surge quando o indivíduo não se dá por satisfeito com a pequena parcela de poder que adquiriu ou lhe foi atribuída, mas se sente superior a outras pessoas, acha-se detentora de uma responsabilidade (na verdade, hipotética e falsa) sobre outrem e exorbita sua autoridade, ou seja, a síndrome faz com que um indivíduo abuse de alguém fazendo mau uso de um poder que tem ou imagina ter.
Pessoas acometidas pela síndrome tendem a ter, habitualmente, sua autoestima potencialmente prejudicada, uma vez que sentem a necessidade permanente de humilhar o outro na perspectiva de eliminar o próprio sentimento de “menos valia”. Procuram rebaixar ou diminuir outrem para sentir-se maior (MACHADO, 2022): trata-se de uma reação agressiva praticada contra qualquer um que possa representar um risco mínimo para sua “autoridade” percebida como falsa pelos outros e, por isso, não conseguem encontrar lugar em qualquer ambiente. Tais pessoas, detendo um mínimo poder, procuram, a todo custo, sobrepor-se de forma despótica, impondo suas vontades aos outros, em uma forma velada ou manifesta de autoritarismo.
Não se deve, porém, confundir poder, autoridade e autoritarismo. A autoridade é um bem que se conquista. Autoridade resulta do reconhecimento a um esforço empenhado, ao desempenho ou execução de papéis que mostram a competência ou habilidade desenvolvida de um indivíduo: depende, pois, da anuência das pessoas no entorno (MARCARINI, 2017; CATTAPAN, 2019; BACK, 2021; MACHADO, 2022).
Arendt (2011) já demarcava a diferença entre autoridade e poder: a autoridade se consolida na obediência consciente e respeitosa, enquanto o poder se exerce na violência pelo uso da força e, neste sentido, a autoridade tende a fracassar. A autoridade é um atributo de pessoas e não se fundamenta na submissão, na abdicação da razão, mas reflete o reconhecimento de que alguém detém autoridade porque dispõe demais conhecimento e habilidades para execução de atividades e, no trabalho, porque compreende as limitações dos outros seus pares. Gadamer (2003, p. 371) reforça o conceito de autoridade de uma pessoa: “[…] a autoridade é, em primeiro lugar, uma atribuição a pessoas”. Dessa forma, “se alguém pretende ser reconhecido como autoridade, não deve esperar adquiri-la por outorga; a autoridade ‘deve ser alcançada’” (BACK, 2021, p. 4). A autoridade se fundamenta, pois, no reconhecimento, em uma ação racional, consciente, não depende da submissão, da obediência, mas de um conhecimento socialmente reconhecido (ARENDT, 2011).
Por seu turno, o autoritarismo, diferentemente da autoridade legítima e socialmente conquistada, é a instauração de um poder pela força bruta, e uma organização em que impera o poder autoritário se baseia em uma autoridade superior a ela própria (CATTAPAN, 2019). Geralmente é traduzido em atitudes agressivas que objetivam subjugar o outro; logo, brota da incompetência, da carência de recursos para administração dos conflitos que dele nascem (MARCARINI, 2022).
Nesta ótica, o desgaste da autoridade proporciona situações de crises de governança que passa a nortear-se pelo autoritarismo, pela imposição de ordens nem sempre compatíveis com a realidade de uma organização em que a liberdade, o reconhecimento e o engajamento entram em derrocada ou mesmo colapso. A imposição da autoridade pelo autoritarismo abre as portas para o totalitarismo que, transmudando os conceitos para o ambiente laboral, anula qualquer bom funcionamento, o labor prazeroso e o crescimento em um ambiente organizacional. No totalitarismo ocorrem a estagnação temporal fora da perspectiva conservadora, espaços de dominação contra a ascensão da liberdade, estagnação de espaços sociais por força da dominação unívoca e a perspectiva de continuidade do poder violento sobre outro. Arendt (2012) lembra que o totalitarismo é ocaso simultâneo da autoridade e da liberdade.
O autoritarismo tem como centralidade o “princípio da autoridade”, mas sob determinado viés em que se estabelecem relações antagônicas: comando e obediência incondicional, estrutura profundamente hierárquica e desigualdade entre os homens, exclusão ou redução máxima de participação e restrições a ações libertárias, emprego de meios coercitivos para impor obediência e privação de liberdades. Em decorrência, é frequente o autoritarismo presente em ditadura e sistemas totalitários em oposição à democracia e cujas fronteiras não são bem evidentes, mas se quedam instáveis em diferentes contextos.
Dentro de uma organização, hão que se definir claramente os conceitos de autoridade, autoritarismo e relações de poder. Paula (2022, p. 163) esclarece que a autoridade se contrapõe à coerção pela força (autoritarismo) e se assenta na persuasão por argumentos objetivos. Qualquer relação autoritária entre “aquele que manda e aquele que obedece, não se assenta na razão comum, nem no poder de quem manda, mas na própria hierarquia, reconhecida como legítima por ambos e que predetermina o lugar de cada um”. No mundo contemporâneo, a perda da autoridade ratifica a etapa final de um processo que tanto tempo tem solapado a humanidade.
Por outro lado, segundo Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998), em seu significado mais geral, poder indica a capacidade ou possibilidade de alguém agir, produzir efeitos e tanto pode referir-se a indivíduos quanto a grupos humanos ou objetos e fenômenos naturais, ou seja, poder é a capacidade de ação e de produção de efeitos sobre si, sobre os outros e sobre o ambiente (BRAGHIN, 2017). Poder não se limita, porém, a uma definição, posto que se trata de termo polissêmico. Há, todavia, consenso de que poder não é poder sobre os outros, mas surge com os outros; não é mantido dentre do agente, mas extrapola para outros agentes, reside entre agentes quando atuam juntos: o poder é sempre “relacional” (REED, 2014).
Como a autoridade se fundamenta no livre consentimento, ela (a autoridade), diferentemente das relações oriundas da síndrome do pequeno poder, proporciona um equilíbrio na relação entre a liberdade e obediência nas relações humanas de poder e proporciona estabilidade duradoura: portanto, não se concebe autoridade pela violência, uma vez que a autoridade existe além do poder e é outorgada por opção (MOREIRA, 2016).
Não se contesta, no entanto, que lidar com pessoas “invadidas” pela síndrome do pequeno poder é dificílimo. Essas pessoas têm uma enorme dificuldade em estabelecer limites de convivência. A partir do momento em que tenha enxergado no outro uma ameaça ao seu suposto poder, ela não medirá ações ou modos para fazer valer a sua ilusória “autoridade” (MARCARINI 2017).Considera-se que o poder verdadeiro emana do saber que se transforma em habilidades, capacidades, competências: quanto mais se sabe sobre algo, mais poder se estabelece sobre isso e, nas relações humanas, esse saber se deve pautar no respeito com o outro, pelo caráter ético e moral e pelo compartilhamento por quem o detém.
As relações de poder na atualidade são construídas por uma rede complexa de relações, com base no conhecimento partilhado, em boa convivência com as tecnologias. Entretanto, à medida se amplia o conhecimento, aumenta-se potencialmente a responsabilidade, especialmente quando se tomam decisões. Em qualquer empresa, mesmo vigorando uma estrutura de cooperação, existe uma hierarquia de poder: na posição de mediador das relações, um líder capaz de garantir equilíbrio e produtividade na organização preza por valores, princípios éticos e necessidades coletivas.
Contrariamente ao poder legitimamente estruturado, a síndrome do pequeno poder valoriza o individualismo e, em decorrência, pode insuflar o caos. Nesta situação, instaura-se a prevalência dos interesses pessoais, marcadamente egocêntricos; originam-se crises de autoridades, atitudes prepotentes, ambições desmedidas. Dessa forma, qualquer empresa, ainda que se estruture na cooperação, necessita de um “líder mediador das relações e seja responsável por “garantir que haja organização, equilíbrio e produtividade” (MARCARINI, 2017), da mesma forma que faça valer valores e respeito pelas necessidades coletivas.
O poder é necessário para dar norte, equilíbrio, mas também para sugerir e impulsionar mudanças e vencer obstáculos: transformar – eis a palavra de ordem e do significado do poder. As características e o caráter de quem o exerce é que vão modular as ações e os resultados. Sabe-se que o comportamento abusivo – bem característico do detentor do pequeno poder – deve ser detido. Abusa aquele que faz mau uso do poder que tem ou imagina ter: muitas vezes, o indivíduo (em qualquer esfera da vida), para garantir o poder, não pensa no outro, nas consequências que possa vir a causar: nesse cenário, nenhuma relação interpessoal aceitável sobrevive, uma vez que está baseada em posturas de dominação e exploração.
Sob o ponto de vista da Psicologia, a síndrome do pequeno poder refere uma postura de autoritarismo adotada por um indivíduo, quando lhe é conferido um poder, por menor que seja. Ele o utiliza de forma absoluta, imperativa, autoritária, sem dar ouvidos aos problemas das pessoas de seu convívio. Geralmente, sugere um indivíduo insatisfeito que, ao obter sua pequena parcela de poder, exorbita sua autoridade e tenta agir além de sua competência. Azevedo e Guerra (1989) afirmam que esta síndrome engendra processos de dominação e exploração interpessoais, o que caracteriza o pequeno poder como uma pequenez que interfere nas relações interpessoais, particularmente acentuadas no ambiente organizacional que demanda hierarquia de funções e poder.
Diversos problemas concorrem para esse comportamento, entre os quais podem ser citados a formação patriarcal, percepção do adulto como medida e centro das ações e submissão nas relações de gênero, além de outras formas de autoritarismo presentes na sociedade atual, sutis e veladas, ou francamente expostas, como corporativismos, ativismo direcionado a certos grupos humanos, burocracia exacerbada nos atendimentos, autoritarismo na execução de determinadas funções (porteiros para a entrada e saída de pessoas, por exemplo). Para a Psicologia, o problema central reside no desrespeito à legislação, no abuso de autoridade (pensada em grau acima do real), em qualquer perturbação do sossego da sociedade ou de um indivíduo, apenas para mencionar algumas situações. Piana e Bezerra (2019, p. 203) explicam que é a síndrome do pequeno poder é uma relação desigual de poder, uma correlação de forças em alguém procura exercer poder maior sobre o outro, em uma “relação exercida do mais forte sobre o mais fraco”.
Geralmente, entre os indivíduos mais suscetíveis à síndrome estão aqueles com baixa inteligência emocional, pouco autoconhecimento e os insatisfeitos com a posição que ocupam na organização. Exemplo típico de insatisfação é o colaborador que, embora não tenha conseguido a pretendida promoção, fantasia a realidade e se propõe uma autoridade hipotética, mas tomando-a como se fosse real, geralmente com o propósito de obter status perante os olhares alheios e vivenciar um poder de que não dispõe. Tal comportamento é decorrência da ânsia de comandar ou da influência de referências ou conceitos deteriorados sobre hierarquia e comando.
Na organização, o colaborador se exercita em sucessivas síndromes de pequeno poder crendo que possa vir a encarnar a figura do poder pleno. Na verdade, ele exorbita o pequeno poder, característica da síndrome, e revela sua extrema fragilidade: “ao tentar agigantar seu poder não faz senão apequená-lo ainda mais. Entretanto, a síndrome do pequeno poder tem consequências nefastas para as pessoas por ela atingidas” e para as organizações (SAFFIOTI, 1989, p. 19), cujo ambiente é local propício para a manifestação dessa síndrome que acaba por revelar aumento da intolerância, abusos de poder e violência, desrespeito e exploração (OLIVEIRA; MARTINS, 2007).
A ajuda para esses casos pode vir da cooperação, do entendimento sincero, do diálogo franco sobre a realidade do poder na organização, sem arrogância e sem atitudes de humilhação em auxiliar. Não se deve afastar o colaborador autoritário sem antes propor uma conversa franca e objetiva sobre a questão: deve-se diminuir a autoestima do outro para que esse outro possa crescer, sem imputar-lhe qualquer tipo de humilhação ou preconceito: entende-se que poderiam ser altamente destrutivos para toda a equipe da organização o preconceito, a humilhação, a falta de colaboração tanto quanto a persistência do comportamento autoritário do indivíduo com síndrome do pequeno poder.
REFERÊNCIAS
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